24 de dezembro de 2010

Parte 03 - O Concerto de Adeus

Nesta terceira e última parte da História do Cream, entraremos em contato direto com o luxurioso ambiente de fama, dinheiro, drogas e mulheres que cercou a banda em seus momentos finais, e o que a neurose advinda de todos estes elementos, combinados, fez para cingir para sempre uma das melhores bandas de que já se teve notícia. O leitor saberá como foram as primeiras dissidências, as mágoas e feridas que nunca foram esquecidas e nem curadas, a conexão Beatles / Rolling Stones / Cream, uma tocante homenagem do mago Hendrix, e a gota final de tudo: uma simples e miserável matéria da ‘Rolling Stone’. Verá, ainda, o que é uma despedida em grande estilo: o concerto eternizado no filme-disco “Goodbye Cream”.


Parte 03 – O Concerto de Adeus
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Enquanto crítica especializada e fãs se curvavam diante do som intenso e majestoso do álbum Disraeli Gears, que subia tranqüilamente nas paradas de sucesso daquele novembro de 1967, ninguém poderia imaginar que, dentro do Cream, a tensão havia voltado a se estabelecer como ordem natural das coisas. Desde a época de Bruce e Baker na Graham Bond Organisation que o clima não andava tão tenso como naqueles dias. A disputa de egos – para conceder autógrafos, para dar entrevistas, para resolver os assuntos particulares da banda, como divulgação, sessões de gravação etc. – parecia ter chegado a um ponto interminável. O engraçado é que a primeira grande discórdia dentro do Cream tenha começado, pra valer, não entre Bruce e Baker, o que seria mais previsível dado o notório passado de briga dos dois, mas justamente entre Bruce e Clapton.
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Desde o mês de junho, quando havia sido lançado o single “Strange Brew”, Bruce estava desgostoso com Clapton e com o produtor Robert Stigwood, pois ele descobrira, trivialmente escutando o compacto depois de pronto, que uma linha de baixo sua com alguns erros tinha sido a utilizada na mixagem – ou seja, apesar de ser um clássico do rock, até hoje reverenciado e copiado por inúmeros artistas, “Strange Brew”, na verdade, não continha a parte de baixo gravada como a ideal por Bruce. Lembremo-nos que aqueles eram os anos 60, e quase nenhum pop star daquela época passou incólume pela experiência das drogas alucinógenas – assim como inúmeros outros não só da swingin’ London como da América e de vários outros cantos do planeta, Bruce e seus colegas do Cream, envoltos pelo embalo da fama e suas oportunidades graciosas, estavam experimentando uma novidade após a outra, excitados pelo clima de novidade e lisergia que Haight-Ashbury e o Verão do Amor de San Francisco haviam espargido pelo mundo. Foi assim que, envolto em suas roupas multicoloridas e com enormes óculos escuros para cobrir as olheiras de incessantes noitadas e compromissos do grupo, um indignado Jack Bruce chegou ao escritório de Robert Stigwood, numa manhã de junho de 1967, querendo satisfações sobre o que diabos havia acontecido na mixagem de “Strange Brew” para a sua linha de baixo, considerada a correta, desaparecer da versão final da música. Inicialmente, um atônito Stigwood alegou que os custos com o estúdio eram caros, e estavam excedendo o budget da banda – daí, na correria para terminarem a mixagem de “Strange Brew”, em meio à confusão de fitas no estúdio, o tape correto de baixo havia sido limado. Explicações pela metade foram dadas, gestos e sorrisos amarelos foram trocados, e os assessores de Stigwood buscavam, em vão, mostrar a Bruce registros escritos do dia da gravação, tentando amainar aquele polvoroso imbroglio. Já visivelmente alterado após uma não muito deleitável viagem de LSD, Bruce chegava às raias da paranóia: ele havia lido comentários de Clapton (que não estava presente nesta ruidosa reunião) na imprensa escrita, louvando “Strange Brew” e os seus méritos como um marco na carreira do Cream. Clapton era o vocalista da canção, e tinha absoluto destaque no novo hit, que havia sido composta por ele, Felix Pappalardi e sua esposa, Gail Collins; Pappalardi era o novo produtor da banda, como indicavam as novas sessões de gravação, sempre sob o seu comando na cabine de controle: pronto, todas as evidências apontavam para uma conspiração de Clapton e Pappalardi para afundarem Bruce na banda! Ao final das contas, todas as estórias contadas a Bruce não conseguiram apagar o rancor do baixista que, irado, nunca mais esqueceu que um tape contendo a linha de baixo sua correta para “Strange Brew” havia, misteriosamente, desaparecido durante as sessões de mixagem.
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A partir daí, Bruce, sempre um cara cordial e atencioso, começou a se distanciar mais da banda. Obviamente, como um músico decepcionado, ele começou a observar o gerenciamento e o modo como as coisas eram organizadas no Cream com uma maior visão crítica. Durante os concertos, a disputa de egos entre ele e Clapton começou a se exacerbar, sobretudo, nos momentos de improvisação – exatamente aqueles que se tornariam a marca registrada do Cream. Ciente da campanha que empresários e mídia silenciosamente faziam para promover a imagem de Clapton no Cream, Bruce passou a representar, nos shows ao vivo do grupo, uma espécie de oposição, elevando o volume dos amplificadores de seu baixo a um limite ensurdecedor durante as extended jams do grupo, perpetradas durante músicas como “Sunshine of your Love” e “Spoonful”, que atingiam quase meia hora de improvisos. Clapton, em contrapartida, começou a ficar “mordido”, e pagava um road manager só para, no backstage, cuidadosamente aumentar o volume dos amplificadores de sua guitarra na hora em que ele entrasse solando. Muitas vezes, tudo dava errado, e Clapton e Bruce saíam quebrando o pau após o show, inventando desculpas para culparem, um ao outro, por uma performance chata e apagada, quando, na verdade, tudo o que queriam era discutir sobre o volume dos PA’s. Nos bastidores, managers e amigos chegados notavam que o clima era de neurose, e que algo muito errado estava acontecendo.
Para piorar as coisas, alguns fatores externos ainda influíam negativamente no relacionamento entre os membros da banda. Não só drogas e problemas de entrosamento musical devem ser apontados como os culpados pelos conflitos que se seguiriam. As mulheres, também, – sem querer ser machista - desempenharam um papel importante para que o castelo de cartas ruísse. Groupies e tietes, afoitas por alguns momentos de glória, se aproximavam de Baker e Clapton a todo o momento, repletas de incenso, patchouli e ofertas de substâncias miraculosas, regadas a sexo: era a viagem ao paraíso que, invariavelmente, transformava-se numa descida aos infernos, muitas vezes. Baker, por exemplo, era constantemente cobrado, pelas fugazes namoradas que arrumava aqui e ali, sobre o seu papel de “grande baterista”, e, já emocionalmente instável quando chapado de LSD (e outras drogas mais pesadas, no que ele era precursor no Cream), ele era instigado a brigar por mais espaço dentro da banda. Certa vez, após passar uma noitada com algumas “amigas” americanas, Baker chegou aos estúdios de gravação do próximo disco do grupo (o que viria a ser o Wheels of Fire) xingando todo mundo – e, enquanto não destruiu metade de seu kit de bateria, não sossegou. Bruce ficava desanimado por ver tempo e dinheiro perdidos ali, naquelas preciosas horas jogadas fora tentando produzir algo, e largava o baixo num canto, saindo para tomar um chá e tentando refrescar a cabeça até que as coisas ficassem bem novamente para voltar a tocar. A atitude de Clapton era do mais absoluto desânimo – apesar de, visto como o “deus da guitarra” e “líder do Cream”, ele também tivesse lá os seus problemas com as visões doentias das tietes, o buraco para ele era bem mais fundo. Absorto em infindáveis pensamentos, Clapton experimentava as suas primeiras crises depressivas, originadas de um problema que ele ainda não havia conhecido muito bem: a dor da paixão.
George Harrison e Patty Boyd
George Harrison e Patty Boyd

Ainda em 1964, enquanto ainda fazia parte dos Yardbirds, Clapton conheceu o guitarrista dos Beatles, George Harrison, durante uma série de shows que ambas as bandas haviam sido contratadas para fazer no final do ano, no Hammersmith Odeon. Eles ficaram amigos, e ao longo dos anos, com a escalada de Clapton rumo à fama e sua ascensão no grupo de John Mayall e no Cream, a correspondência de ambos aumentou, e ele passou a se encontrar mais amiúde com Harrison em festas e visitas, nascendo daí uma grande amizade, baseada em uma afinidade de assuntos e gostos que os dois possuíam. O problema, a partir de então, talvez fosse justamente esta afinidade, que se estendeu ao ramo afetivo: em 1965, Clapton conheceria, em um encontro na casa de Harrison, a noiva deste, a modelo inglesa Patty Boyd, que dali a alguns meses, estaria se tornando a Sra. Harrison. Como em todas as estórias de grandes amores, Clapton não reconheceu imediatamente, mas estava ali a mulher que o faria perder a cabeça e passar oito longos anos de sua vida enfrentando problemas com drogas e bebidas dos mais diversos, tentando curar a paixão por Patty das maneiras mais inadequadas – período este durante o qual, não esqueçamos, ele pariu, em dedicação a ela, um dos maiores clássicos do rock: a canção Layla, em 1970, uma das mais belas declarações de dor-de-cotovelo da história da música pop.
Apenas com o passar do tempo, de 1966 em diante, e com o fracasso de vários relacionamentos amorosos, é que Clapton começou a perceber que havia algo de errado com o seu pobre coração. Começou a notar, também, que ficava profundamente irritado ao ver as fotos do festejado casamento de Harrison e Boyd nos jornais, ocorrido naquele ano. Consciente do mal que estava atravessando, passou a se distanciar de Harrison por uns tempos, não respondendo mais às suas chamadas e convites. Assim, Clapton procurou se concentrar mais nos assuntos do Cream, e tocar o barco com novos romances, que invariavelmente falhavam por ele procurar idealizar, em seus relacionamentos, uma mulher que fosse exatamente como Patty Boyd. Assim que o LSD, cocaína e demais congêneres começaram a adentrar o cotidiano do Cream, trazidos por garotas, empresários, amigos e demais figuras da esfera de contatos do grupo, Clapton embarcou na onda, procurando, mais uma vez, um paliativo para a dor que estava sentindo, grande bluesman que sempre foi, mas que não sabia explicar. Tudo isso foi levando o guitarrista a um estado de consciência bastante alterado, em diversas situações – e, obviamente, a velha magia do Cream, em estúdios de gravação e palcos rodeados de multidões, começou a falhar, devido ao delicado estado emocional em que se encontrava Clapton.
Um irônico momento do grupo, posando ao lado de uma senhora inglesa no Hyde Park de Londres (início de 1968)
Um irônico momento do grupo, posando ao lado de uma senhora inglesa no Hyde Park de Londres (início de 1968)

Estamos no início de 1968 agora, e esta era a situação limítrofe a que o Cream havia chegado, no ano novo, após um 1967 cheio de êxitos comerciais e artísticos. A tensão que havia se instalado dentro do grupo era difícil de ser superada, em decorrência dos fatores anteriormente explicados. Tínhamos um Jack Bruce extremamente magoado com a sua falta de poder decisório dentro da banda, e desconfiado de tudo e de todos; um Ginger Baker egocêntrico e exagerado, doidão de drogas constantemente, determinado a tomar todo o espaço que pudesse, com medo de ser relegado a um segundo plano por sua condição de baterista; e, enfim, um Eric Clapton nervoso e inseguro, apático e abatido pela sua paixão não resolvida, também se afundando nas drogas. Entretanto, ou talvez pressentindo mesmo a tempestade que se aproximava, promotores de espetáculo e empresários se apressavam em tirar o maior partido que pudessem das lucrativas apresentações da banda, e marcaram uma série de datas – o que, dada a conjuntura por que passavam, poderia só degringolar tudo. Já no final de 1967, haviam se desdobrado em uma série de shows nos EUA, que foram até o final de dezembro. Agora, em janeiro de 1968, enquanto tentavam gravar alguma coisa para o seu próximo álbum, os integrantes da banda recebiam de seus empresários, estupefatos, a notícia de que havia sido marcada para eles uma mega-turnê pelos EUA, de costa a costa, com início em 23 de fevereiro, e que se estenderia, provavelmente, até junho! As reações variaram de uma pseudo-felicidade (por tocar na América novamente) ao sentimento de estafa e esgotamento nervoso, assim que pensaram que seriam cinco meses vivendo juntos, lado a lado... Clapton, anos depois, é quem melhor definiria a situação delicada pela qual a banda estava passando naqueles dias: “Foi uma experiência terrível que vivenciamos, dia após dia, naquela época. Já estávamos ficando acostumados a sair e a nos relacionar apenas com os amigos que fazíamos nas inúmeras cidades em que chegávamos, e entre nós, nada mais havia a se falar. Não estávamos mais vivendo como um verdadeiro grupo; havia uma série de conflitos.”
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Ao mesmo tempo em que se concentravam para preparar novo material e conseguirem dar o melhor de si nas novas gigs que se aproximavam, mal imaginavam os membros do Cream que, fora de toda a paranóia a que estavam submetidos em seu ambiente de convívio, do lado de fora, já eram vistos com uma reverência admirável, e só presente em bandas que tinham muito mais tempo de estrada do que eles. Chegava 1968, o ano das grandes revoluções e protestos – definitivamente, o ano que marcou, de forma política e contracultural, todo o espírito contestatório da década de sessenta, com o Maio de 68 e suas barricadas estudantis na França, as passeatas anti-ditadura no Brasil (e a conseqüente instituição do AI-5), a Primavera de Praga, e os inúmeros protestos, nos EUA, contra o envolvimento do Tio Sam no conflito armado da Coréia comunista – a Guerra do Vietnã. Curiosamente, no meio de toda a balbúrdia que se instaurava, os próprios soldados americanos dispostos a matar ou morrer viviam, do outro lado do mundo, em meio a bombas, disparos, ópio e muita saudade de seus familiares e namoradas, o som do rock que chegava alto e poderoso nas rádios americanas instaladas nas bases militares, para entreter os officers. É interessante como a lembrança de centenas de veteranos daquele sanatório a céu aberto, cuja insanidade foi retratada com brilhantismo por Francis Ford Coppola em seu filme Apocalypse Now, remete a “Break on Through”, dos Doors, ou “Magical Mistery Tour”, dos Beatles (cuja imagem de uma caravana pronta para “te levar daqui hoje”, para muitos soldados, era ou a imagem dos comboios de salvação nos campos de batalha, ou dos esquadrões de desbravamento de território prontos a carregarem milhares de recrutas para a morte...) – uma música tão intensa e emblemática de sua época, que as imagens de psicodelia e sonho se dividem entre as mentes da juventude que pregava a paz e se ornava de flores, e a juventude que embarcava para a morte e pegava em armas. Ainda em janeiro de 1968, as palavras de amor desesperado contidas em “Sunshine of Your Love”, e que refletiam a própria fugacidade que os soldados americanos sentiam, diante das incertezas de conseguirem, um dia, regressar vivos à América para rever suas garotas, faziam desta música a mais tocada no dial das estações de rádio militares norte-americanas instaladas em território vietnamita. Em sua fossa romântica, Clapton nem imaginava que sua guitarra embalava, também, a fossa de vários outros atormentados jovens em luta pelo seu país, que talvez nunca mais pudessem ver o rosto de suas amadas. Também do outro lado do Atlântico, nos EUA, a ovação ao Cream era geral, e o nível de adoração que eles haviam atingido beirava a histeria dos idos tempos da beatlemania, fazendo com que George Harrison seguidamente congratulasse seu colega de instrumento pelos novos êxitos. Diversas publicações, como New Musical Express, Disc & Music Echo, Beat Instrumental e Melody Maker, repetidamente deitavam desmedidos elogios às performances ao vivo do grupo, e elevavam o seu último LP, Disraeli Gears, à condição de “criação da mais pura energia musical, direto do topo” (nas palavras de um crítico da Melody Maker). Havia, no entanto, uma publicação só que, desde o início da carreira do Cream, nunca topou bem com banda: a célebre revista americana Rolling Stone. Já na época do primeiro LP, Fresh Cream, haviam lhe dedicado a pecha de “presunçoso e sem inspiração”. Agora, para Disraeli Gears, apesar de toda a aclamação geral, escreviam: “Infelizmente, o álbum não se sustém em conjunto, prejudicado por material bem pobre”. Nunca ficaram bem claros os motivos pelos quais os críticos desta publicação remavam contra a maré, mas todos sabemos que, assim como em qualquer outro ambiente profissional, e imprensa musical se move através de um certo jogo de interesses – ingressos, bebidas ou garotas não concedidas nos shows certos, e nos momentos certos, por promotores e managers do Cream, a certos jornalistas, podem muito bem ter determinado a danação total do grupo pela Rolling Stone. De qualquer forma, veremos, logo adiante, que este desgosto da Rolling Stone em relação ao Cream iria culminar em um acontecimento de dimensões bastante consideráveis.
A banda, na época da gravação de ‘Wheels of Fire’
A banda, na época da gravação de ‘Wheels of Fire’

A tour que se seguiria, conforme as previsões, não melhoraria nada as relações internas do grupo, mas serviria para que dessem ao público americano o que ele mais queria: muito rock pesado. Sonoramente, a banda estava melhor do que nunca – ainda que, em algumas noites, devido a certos exageros nas substâncias químicas por parte dos músicos, eles se perdessem totalmente em meio aos solos e improvisações, e quebrassem a barreira dos quarenta minutos em certas músicas! A platéia dos anos sessenta, no entanto, e sobretudo a platéia do Cream, era acostumada a estes virtuosismos – a maioria deles, a bem da verdade, desnecessários – e tinha pique para agüentar o exagero.
Entre as idas e vindas do grupo entre shows e sessões de gravação agendadas (para preparar o próximo álbum, que deveria se chamar Wheels of Fire), o clima agressivo entre Bruce e Baker só ficava cada vez mais acirrado: as velhas brigas e disputas voltavam à tona, o que só prejudicava o Cream, já que a sua seção rítmica, por idéias musicais divergentes, não se entendia. Clapton, entorpecido pelos óbvios motivos já citados, se sentia meio perdidão e, se antigamente, pelo menos, ele era um ponto conciliador entre Bruce e Baker, agora nada mais parecia fazer sentido. Wheels of Fire, no entanto, exigia a devida atenção por parte de todos os envolvidos – afinal, era uma superprodução para os padrões da época! Produzido como um verdadeiro tour de force do Cream, havia sido planejado para ser um álbum duplo (inspirado no tão comentado White Álbum dos Beatles), era a mais cara produção realizada pelo grupo, apelava para o novo sistema de 16 canais, e envolveu um sem número de instrumentos e músicos convidados (além do próprio amigo e produtor Pappalardi) que lembrava o Sgt. Pepper’s dos Beatles: cello, diversos tipos de órgão, glockenspiel, harpas, sinos de diferentes tons, viola, seção de metais, o escambau... tudo para dar um clima de experimentação sonora, idealizado por Clapton, Baker e Bruce para o disco, e gerar a sensação de uma verdadeira sinfonia hard rock nos ouvintes. E é isso exatamente o que eles conseguiram em faixas como a épica “Those Were the Days”, pontuada por sinos angelicais, e a belíssima e cheia de soul “Desolated Cities of the Heart”, que conta com um intermezzo de violinos que dá à música um clima todo especial.
Apesar de toda a inovação buscada pela banda em seus novos sons, entretanto, volta e meia as discussões recomeçavam, e muito do gás para se concluir parte dos trabalhos se perdia. Faces aborrecidas novamente irrompiam, por um motivo qualquer, e a atmosfera de bode tomava conta do estúdio mais uma vez. Soluções para o marasmo foram, então, buscadas, a fim de que o álbum pudesse ser concluído. Primeiro, houve o indispensável incentivo de Felix Pappalardi, que desempenhou quase que o papel de quarto membro do grupo naqueles dias (inclusive, muitas vezes, tocando vários instrumentos e compondo ativamente com a banda, para trazer novas idéias musicais que os animassem). Segundo: resolveram voltar a tocar alguns blues, como nos velhos tempos, tentando reacender aquela velha chama das primeiras jams. Talvez, por isso, grande parte do material de Wheels of Fire fosse sair tão permeada de blues, como Disraeli Gears não era. Prova disso são “Sittin’ on the Top of the World”, de Howlin’ Wolf, revivida pelo grupo em uma versão repleta de solos estelares de Clapton, “Born Under a Bad Sign”, de Albert King, e “Crossroads”, um velho standard da lenda Robert Johnson, que nunca saíra da cabeça de Clapton, e para o qual estavam treinando constantemente agora, para os shows da turnê americana – acabaria entrando no novo álbum, inclusive, não como uma versão de estúdio, que nunca foi devidamente produzida, mas sim, como um take gravado de um show da banda no Fillmore West. Também havia “Politician”, uma vigorosa composição nova e cheia de ironia, por cortesia de um Jack Bruce revoltado com os parlamentares britânicos: bebia diretamente na fonte do blues, conduzida por uma imponente linha de baixo que impressionava o ouvinte na primeira audição.
Tocando ao vivo no ‘Smothers Brothers TV Show’, em maio de 1968.
Tocando ao vivo no ‘Smothers Brothers TV Show’, em maio de 1968.

Em maio, dois importantes acontecimentos marcam o Cream. O primeiro seria a sua última aparição tocando juntos, como grupo, em um show de TV. Em virtude do grande sucesso alcançado por “Sunshine of Your Love”, eles são convidados para tocar a música ao vivo, no prestigiado programa pop Smothers Brothers TV Show. O acordo, entretanto, era para que tocassem duas canções, e, não querendo voltar ao passado e apresentar outro hit qualquer, resolvem tocar algo novo, em um set bem acústico e calmo: Clapton no violão, Bruce no baixo e Baker com um simples atabaque – tentando, como na época de Wrapping Paper, mostrar ao público um outro lado do grupo, mais melódico. Assim, direto do material que estava sendo preparado para Wheels of Fire, trazem “Anyone for Tennis”, uma bucólica e folky composição de Clapton da qual ele posteriormente iria se cansar, passando a detestá-la - apesar de ser uma contribuição sua para a trilha sonora do filme que um amigo seu estava rodando (depois lançado como The Savage Seven – um violento drama sobre uma gangue de motoqueiros e seus conflitos existenciais, estrelando o lendário guitarrista Duane Eddy, em um dos papéis principais). Apesar de ser uma canção menor na carreira do grupo, assim que foi lançado em compacto, após a performance no Smothers Brothers, subiu assustadoramente nas paradas, indicando como o cacife do Cream estava alto naqueles dias – “Anyone...” não tinha nada do estilo da banda. Entretanto, como levava seu nome, vendeu como água, como todos os seus outros singles.
O segundo acontecimento seria fatídico para o destino do grupo, terminando por ruir todas as estruturas internas que já estavam bastante abaladas.
Edição da ‘Rolling Stone’ que arrasaria Clapton e deixaria o grupo abalado
Edição da ‘Rolling Stone’ que arrasaria Clapton e deixaria o grupo abalado

No dia 11, a Rolling Stone publicou uma entrevista feita, algumas semanas antes, com Clapton, ao lado da crítica de um show recente da banda, feita pelo jornalista Jon Landau – nome que se tornaria odiado pelos fãs do grupo pelo resto de suas vidas. A entrevista, distorcida ou não pelos editores, mostrava um Clapton esnobe e convencido de sua alta posição dentro da banda, se entregando a todas as declarações caprichosas que uma estrela pode fazer: coisas que ele havia dito que indicavam um ego mais agudo haviam sido maximizadas ao cubo na matéria. E, em seu review do show, Landau colocou aquela declaração que ficaria para sempre registrada na memória do guitarrista: “O Cream já saturou, chegou ao limite, e parece não haver mais para onde ir (...) Todos percebemos que Clapton é um mestre dos clichês do blues de toda essa geração pós-guerra que resolveu passar a mão numa guitarra!”. E, em sua fúria anti-Cream, ia além: “Clapton, assim como aqueles virtuosos que o acompanham, é ótimo em copiar idéias de outras pessoas”.
Aquilo arrasou Clapton de uma maneira tal que, depois de ler aquela edição, ele nunca mais foi o mesmo. Amigos dizem que o guitarrista pegou um exemplar da revista enquanto estava tomando um drinque uma tarde, na mesa de um bar em Boston, após uma passagem de som, sentou-se lá, e pôs-se a ler o que era só destruição e depreciação de uma carreira solidamente construída. “Aquilo foi um evento em minha vida. Eu não consigo acreditar em tudo que estava escrito lá até hoje.” Ele comentaria, algumas semanas depois da repercussão da reportagem, na revista Hit Parader: “Eu abri, li tudo aquilo, e a coisa toda era só ego. Ego, ego... e só ego... escorrendo pela entrevista, de uma maneira bem forte. E aí eu viro a página e dou de cara com a crítica do show. E aquilo, sabe... naquele momento em particular eu praticamente quebrei por dentro, tudo aquilo no que eu acreditava em termos de música ruiu e caiu em pedaços em poucos minutos. Eu entrei numa crise depressiva lá mesmo e passei o resto da tarde naquele bar. Eu estava estático. Tive que ser levado por amigos para casa depois... foi tipo uma cena de crise depressiva mesmo. E o pior é que toda a motivação por trás daquilo tudo parece ter sido realmente maléfica. Aquele cara (Landau) me chamou de ‘mestre do clichê de blues’. Isso foi o que ele falou de mim. E essa foi uma das razões pelas quais eu pensei ‘Chega disso. Estou caindo fora disso tudo.’ Eu só pensava em abandonar tudo, a partir de então.” Como é publicamente notório, sabemos que depois do fim do Cream, Clapton passou a renegar a sua condição de guitarrista famoso e quis até mesmo voltar ao anonimato, passando a tocar em uma banda sob pseudônimo (Derek and the Dominoes, com quem lançou “Layla”), e tentando reafirmar a sua reputação e sua carreira de forma bem modesta, sem as luzes grandiosas e a megalomania roqueira do Cream, numa espécie de arrependimento e auto-flagelação por ter abandonado a sua condição de simples guitarrista de blues em Londres para se tornar uma mega-estrela do rock. Seja como for, a partir de então, após as bombásticas declarações de Clapton de como foi afetado pela matéria da Rolling Stone, vários semanários e publicações musicais, inglesas e americanas, passam a prever o fim da banda – que, se já não estava bem internamente, agora, com a desistência de Clapton, tinha tudo para acabar de vez mesmo.
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Finalmente, com o final da turnê americana, após muito pega-pra-capar entre todos os componentes da banda e a crise vivida por Clapton, aparentemente, agora, teriam um descanso, e Wheels of Fire foi lançado em julho daquele ano. Não é nem preciso dizer que, com a imensa expectativa de público e imprensa pelo próximo trabalho do Cream, o álbum chegou ao topo do hit parade americano brincando. Também na Inglaterra, foi vendido a uma velocidade estonteante, rapidamente saindo da posição 54 nos charts britânicos para atingir a 3a. Como o pessoal da banda não havia ficado satisfeito com grande parte do material produzido em estúdio, apesar de toda a fanfarra musical lá organizada, decidiram fazer uma homenagem aos fãs das apresentações do grupo, e Wheels of Fire foi lançado como sendo um disco de estúdio e o outro ao vivo, contendo hits da banda tocados nos shows do Fillmore West e do Festival de Winterland, em San Francisco (dentre eles, a estupenda releitura de “Crossroads”, até hoje considerada a mais perfeita gravação ao vivo de rock jamais feita), para o deleite dos ouvintes. O grande hit mesmo, entretanto, era a mágica “White Room”, uma viagem de 5 minutos e tanto com vocais inspiradíssimos de Jack Bruce, bem ao estilo majestoso do Cream, que sabia como ninguém misturar sons pop, jazz, psicodelia e hard rock viajante em canções impagáveis.
Publicações como New Musical Express, Disc & Music Echo, Record Mirror e Melody Maker se curvaram diante do lançamento e o adoraram em suas páginas com um louvor até então inédito para revistas e jornais de rock. Era aclamado, definitivamente, como a obra-prima do Cream, que provava sua versatilidade tanto nas faixas ao vivo como nas pérolas de estúdio, cheias de criatividade e novas sonoridades incorporadas ao habitual peso de sua música. O britânico Beat Instrumental foi taxativo: “Comprem este álbum ou vivam miseravelmente o resto de suas vidas!”. Mas a Rolling Stone, só para não fugir de sua nojenta tradição, estampou em letras bem visíveis, num artigo de Jan Wenner: “O Cream é bom numa série de coisas; infelizmente, composição e gravações não estão entre elas”. Logo adiante, o mesmo jornalista lançava um disparate: “a sua ‘White Room’ é, praticamente, uma duplicata de ‘Tales of Brave Ulysses’”, sendo que ambas as canções eram muito diferentes, apesar de, até certo ponto, seguirem uma mesma cadência. Shows, músicas, gravações... o que mais faltava para eles depreciarem?
Neste meio tempo, Clapton resolve esfriar um pouco a cabeça com o seu sofrimento, e, também pela ânsia de ver Patty novamente, nem que se seja ao lado do amigo, ele se aproxima novamente de Harrison. Este, quase que imediatamente, agradece a sua visita com um convite que entra para a história do rock: conversando sobre o novo álbum que os Beatles estavam produzindo, ele comenta como as coisas agora estão diferentes nos estúdios de Abbey Road, e que, como cada beatle anda produzindo o que quer, separadamente, ele delegaria o solo inteiro de uma composição nova sua, “While My Guitar Gently Weeps”, a Clapton, por achar que seu estilo de solar casaria muito bem com o clima da canção. Um comovido Clapton, agradecido pela chance de participar de uma gravação dos Beatles, e roído por dentro por todo um sentimento brutal de culpa por estar amando a mulher de seu melhor amigo e ter que permanecer em silêncio, aparece em Abbey Road em 6 de setembro, e após gravar a sua parte para a música, desabafa com Harrison: o Cream definitivamente não tem como continuar, e ele acha que vai partir para outras empreitadas (Harrison também havia comentado com Clapton, tempos antes, sobre como andava desanimado com os Beatles ultimamente).
Cena do filme ‘Goodbye Cream’, que registra o lendário concerto de despedida do grupo
Cena do filme ‘Goodbye Cream’, que registra o lendário concerto de despedida do grupo

As incertezas, a partir de então, cresceram com a mesma intensidade de manchas nebulosas no céu durante o aproximar de uma grande chuva. Quando raramente localizados pela imprensa, nenhum dos membros da banda dava declaração alguma sobre qual era o destino do Cream ou o que iria acontecer. Apenas eram muito fortes os rumores de que o empresário Robert Stigwood vinha tentando, já havia várias semanas, reunir todos em uma sala só, acalmar os ânimos e conseguir persuadi-los a continuar o trabalho até ali realizado. Stigwood bem que tentou assim, de julho a setembro daquele ano – infrutiferamente.
Clapton: ‘Goodbye Cream’
Clapton: ‘Goodbye Cream’

Quando o Cream finalmente voltou à mídia, em outubro de 1968, já era para anunciar a sua eternamente célebre Farewell Tour, ou seja, a “Turnê de Despedida”, que iria ser finalizada, em grande estilo, com um farewell concert, o concerto de adeus, eles ainda não sabiam bem aonde. Foram marcadas várias datas nos EUA, todas com lotação máxima e tickets instantaneamente esgotados – era a última oportunidade de ver o Cream! Oakland, Iowa, New York... na Big Apple, após um lendário concerto no Madison Square Garden, receberam o disco de platina pelas vendas recorde de Wheels of Fire. Jornalistas afoitos se acotovelavam para conversar com Jack Bruce, nos bastidores do show: “Vocês estão realmente acabando... ou poderíamos dizer que isso é um dos mais geniais golpes promocionais para conseguirem mais vendas de ingressos?” – comentava ironicamente um dos repórteres presentes. “Bem... eu simplesmente acho que o que basta... já basta.”, respondia impacientemente o baixista.
Baker:‘Goodbye Cream’
Baker:‘Goodbye Cream’

O ato final, todos concordaram, seria encenado no grande Royal Albert Hall de Londres, em um dos mais disputados e emocionantes shows da história do rock: marcado para 26 de novembro de 1968, o concerto de adeus do Cream teve, como abertura, o grande Taste, de Rory Gallagher (e que todos imaginavam que, por ser também um power trio, seria o sucessor do Cream pelos anos seguinte – mas também logo se desmanchou), e uma banda que já indicava o futuro do rock, dali para os anos 70: o Yes, que, nas suas longas digressões, mostrava como o Cream havia inovado no rock ao vivo e abrido espaço para muita coisa antes não imaginada. Os ingressos se esgotaram em apenas duas horas de venda, e a platéia, querendo prestar a sua última homenagem aos seus heróis, aitrou 5.000 rosas aos pés de Clapton, Bruce e Baker ao final do show, aplaudindo compulsivamente e esperando pelo bis, em que eles detonaram “Sunshine of Your Love” e a velha “Steppin’ Out”.
Bruce: ‘Goodbye Cream’
Bruce: ‘Goodbye Cream’

Ainda depois de terminado, o público continuava os ovacionando ruidosamente, mas ao perceberem que o fim do show realmente havia chegado, todos entoaram emocionadamente: “God Save the Cream!” (numa subversão criativa do tradicional “God Save the Queen” com que a Rainha Elizabeth era saudada). O sucesso foi tanto que um segundo show foi realizado, na mesma noite, poucas horas após o primeiro, e todas estas cenas se repetiram, transformando o concerto de adeus em dois, na verdade. Ambos os shows foram filmados por Tony Palmer e condensados em um filme histórico, chamado Goodbye Cream, posteriormente televisionado pela BBC, e lançado com grande sucesso no mundo inteiro. É mais um daqueles momentos, registrados em celulóide, da simbologia de uma época que não volta mais e de suas bandas lendárias, se despedindo – fez história, assim como os filmes Let it Be, dos Beatles, e Gimme Shelter, dos Rolling Stones.
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Em vinil, no entanto, ainda havia a última despedida a ser feita. E com o mundo inteiro ainda respirando muito Cream após a chegada do ano novo de 1969, no final de fevereiro sai o álbum Goodbye Cream – que, ao contrário do que o título possa fazer pensar, não é uma trilha sonora do documentário do último show, mas sim, uma simpática coleção de faixas que haviam ficado de fora da edição final de Wheels of Fire e algumas coisinhas novas, dividido em três músicas ao vivo, retiradas de um show em 19 de outubro de 1968 no Fórum, de Los Angeles, e quatro registros de estúdio – dentre eles, a já famosa balada “Anyone for Tennis”, remixada e lançada em uma versão um pouco diferente da do compacto. Inicialmente, o álbum havia sido planejado para ser uma continuação de Wheels of Fire: ou seja, da mesma forma, um disco de estúdio e outro só ao vivo – entretanto, diante do material considerado insatisfatório por Clapton e cia., logo o plano foi abandonado. O que chamava mesmo a atenção – e que seria o último grande sucesso e hit single do Cream – era uma outra balada, “Badge”, que era uma excelente parceria de Clapton e George Harrison na composição, entretanto, creditado como “L’Angelo Misterioso”, para não render problemas legais com a EMI, gravadora dos Beatles. Esta gravação, da qual Harrison participou, um clássico do rock, esconde uma estória engraçada: o seu curioso título saiu de um equívoco de Clapton, do qual Harrison deu boas gargalhadas. Estava previsto que Clapton não tocasse até que chegasse a parte da virada de ritmo da canção – o bridge, como dizem os ingleses. Entretanto, como Harrison escreveu em garranchos a palavra “bridge” no meio da letra da música, e Clapton, observando de longe o papel, não conseguia enxergar direito o que estava escrito, ele perguntou: “Que diabos é isso, Georgie? Badge?” – e assim ficou no nome da música. O som era tão bom pois, nas palavras de um crítico de música norte americano, “soava tanto a Cream quanto a Beatles”...
A bem humorada foto de contracapa de ‘Goddbye Cream’
A bem humorada foto de contracapa de ‘Goddbye Cream’

A produção de arte de Goodbye Cream também revela como os músicos estavam aliviados por estarem virando aquela página na história de suas vidas. Clapton, Baker e Bruce concordavam, entre si, que já haviam dado o melhor que podiam como um conjunto, e resolveram fazer uma capa para o disco bem-humorados e fazendo uma gozação com o próprio fim do grupo – num clima bem diferente do melancólico final dos Beatles, com os LPs Abbey Road e Let it Be. Concordavam, também, que agora não havia outro rumo a não ser partir para coisas novas, tentar parcerias e grupos diferentes – enfim, inovar, seguir adiante sem ficar olhando para trás, que é sempre o caminho que um verdadeiro músico deve seguir. Sem mágoas, rancores ou ressentimentos, mas com uma espécie de senso pelo dever cumprido, os três haviam se reunido nos estúdios do fotógrafo Michael Cooper no final de 1968, para a sessão de fotos simulando o gran finale de um show da Broadway, ou de um daqueles grandes musicais de Hollywood, da qual sairiam as divertidas capa e contracapa do último disco da banda: vestidos de roupas de gala prateadas, com cartola e tudo, os membros do Cream acenavam sorrindo para as câmeras, dando adeus aos seus admiradores e encerrando um capítulo de ouro na história do rock. No interior da capa dupla do LP, no entanto, uma brincadeira de humor negro: os nomes das músicas vinham inscritos em lápides de cemitério...
A verdade é que, até no momento de seu fim, o Cream foi único, insuperável, clássico... Terminaram com uma elegância e uma pompa invejáveis. Além de darem vazão, também, a homenagens inesquecíveis.
The Jimi Hendrix Experience
The Jimi Hendrix Experience

Desde o final de 1968, o Jimi Hendrix Experience, negando a rivalidade sugerida por mídia e órgãos da imprensa entre eles e o Cream (o que sempre foi feito, também, como uma campanha de marketing entre Beatles e Rolling Stones), vinha tocando, em alguns de seus shows, “Sunshine of Your Love”, numa espécie de resposta de Hendrix aos jornalistas, aborrecido com as comparações que vinham fazendo dele com o seu amigo Clapton. Era a reverência do Experience ao Cream, mostrando a todos como eles também se sentiam influenciados pelo trabalho da banda e de como eles a admiravam. O grande tributo, entretanto, aconteceu mesmo no comecinho de 1969, no dia 4 de janeiro, e não poderia ter sido em melhor estilo.
A cantora, apresentadora e dublê de atriz Lulu, numa cena do filme ‘To Sir With Love’
A cantora, apresentadora e dublê de atriz Lulu, numa cena do filme ‘To Sir With Love’

Já plenamente conhecido dos teenagers da época, o programa The Lulu Show trazia a apresentadora Lulu, – aquela mesma que, anos antes, havia desmerecido o trabalho de Clapton diante de Jimi Hendrix numa crítica publicada na Disc & Music Echo – e que era famosa no meio pop londrino por “babar ovo” em cima de novos talentos, num clima de pretensa bajulação e falsidade bem típico de certos apresentadores e apresentadoras de TV de hoje em dia. Como sempre aconteceu com o mainstream, que se apropria de aproveitadores que embalam seus produtos no afã de explorar financeiramente o mercado consumidor jovem, todos sabiam que o negócio de Lulu não era bem o verdadeiro rock – mas ela estava nessa, assim como vários outros, mais pelos interesses lucrativos que o show business já tinha, enxergando o grande potencial econômico do rock, a partir da década de 60. E o convidado especial do Lulu Show naquele janeiro de 1969 era, justamente, o Jimi Hendrix Experience, por quem Lulu dizia ter “a maior admiração”, apesar de Hendrix e todos saberem que, no minuto seguinte, com o aparecimento de um novo artista ou alguma armaçãozinha pop paga por alguma gravadora, eles seriam detratados.
Pois bem, Hendrix se lembrava muito bem das críticas que Lulu havia feito, comparando Clapton a ele na Disc & Music Echo, e como isto havia deixado o guitarrista do Cream magoado. Ele sabia, também, que o acordo para aparecer no Lulu Show previa que o Experience tocasse apenas duas músicas – mesmo assim, em um formato menor, mais pop, e sem muita enrolação, por causa do timing do programa, transmitido ao vivo para toda a Inglaterra. Assim, Hendrix falou com o baixista Noel Redding e o baterista Mitch Mitchell, seus colegas de banda, e urdiu sua doce vingança. Abriram o programa tocando a já célebre “Voodoo Child”, hit de seu último álbum, o fenomenal Electric Ladyland. Logo depois, após uma introdução de Lulu os exaltando e dizendo como ela adorava a próxima música que eles iriam tocar – prevista para ser o seu primeiro sucesso, a balada “Hey Joe” – Hendrix entrou na música com os seus companheiros. Primeiro, iniciaram com uma introdução pesadíssima, que lembrava muito os finais dos shows do Cream, dando o máximo volume de seus instrumentos – o que já deixou os produtores do programa atônitos com aquela barulheira, não prevista no schedule. Após quase um minuto, então, entraram nos acordes da música, finalmente, e começaram a tocar o que era conhecido como “Hey Joe”: Hendrix cantava a letra com desleixo, enquanto Redding e Mitchell conduziam o ritmo calmamente, no compasso lento do blues.
De repente, pânico na produção do programa: algo saía fora do previsto! Numa súbita parada, Hendrix calmamente parou de tocar e se dirigiu à platéia, pasmada, nos seguintes termos: “Vamos parar de tocar esta musiquinha de merda para prestar uma homenagem a uma das maiores bandas de todos os tempos: o Cream!”. E emendaram com os primeiros acordes de uma versão instrumental de “Sunshine of Your Love”, que levaram a platéia ao mais absoluto delírio! Saiu tudo ao vivo, levado ao ar para o alarde dos produtores: o palavrão de Hendrix, a cara de constrangimento de Lulu, o público aplaudindo... e tudo isso no canal de TV da sisuda BBC de Londres! Um daqueles incautos momentos históricos em que o rock, moleque e rebelde, cuspiu na cara do sistema diante de todos. O caos, infelizmente, durou alguns poucos minutos: a transmissão foi cortada, e podia-se ouvir Hendrix falando ao microfone, enquanto um sorriso maroto resplandecia em sua face: “Acho que fomos tirados do ar...”. Está tudo registrado no CD do Jimi Hendrix Experience BBC Sessions, que inclui a apresentação completa da banda no programa daquele dia. Foi, sem dúvida, uma das melhores homenagens que poderiam ser rendidas ao Cream...

Prólogo:
Hoje em dia, as peripécias do Cream e o que o grupo fez para desbravar os limites do rock e da música pop já são bem conhecidos de todos, e muitas destas estórias já entraram para o terreno da lenda. Muitos já sabem, também, do que aconteceu depois com os seus integrantes: as diversas formações das quais Clapton, Bruce e Baker participaram depois, as inúmeras parcerias e gravações, suas carreiras solo, e o que aconteceu depois com estes hoje grisalhos senhores britânicos (talvez nem todos: Baker é o mais acabado, resquícios de seu passado de exageros: um vovô magricela, de cabelos branquíssimos). Isto, no entanto, não é assunto que abordaremos – o nosso propósito sempre foi o de contar uma estória completa, detalhada, e, de certa forma, curiosa do Cream.
Portanto, por outro lado, ficaria incompleto o nosso registro caso não mencionássemos, aqui, a honrosa incursão da banda no prestigioso Rock n’Roll Hall of Fame, e que se deu com uma impagável cerimônia realizada em 23 de janeiro de 1993, no Central Plaza Hotel de Los Angeles onde, por alguns minutos, uma platéia de 700 felizardos e alguns poucos convidados pôde presenciar uma jam de retorno do grupo, em agradecimento pelo título concedido de lendas do rock.
Naqueles mágicos 13 minutos, em que eles tocaram “Born Under a Bad Sign”, “Sunshine of Your Love” e “Crossroads”, os presentes puderam respirar um pouco mais do ar de uma era em que o espírito do verdadeiro hard rock e sua criatividade eram algo mais do que pôsteres de revista e clipes na MTV.

Para que fosse possível a realização de nossa pesquisa, foi consultado o seguinte material:
A História do Rock (Edições Som Três, 1982)
Eric Clapton – Por Ele Mesmo (Ed. Martin Claret, 1992)
John Platt, Disraeli Gears (Schirmer Books, 1998)
Chris Welch, Strange Brew (Castle Communications, 1994)
Brian Hogg & Robert Whitaker, In Gear (UFO Books, 1992)


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