Com o final da década de 80, 
inspirado em parte pela breve retomada no interesse pelo rock 
progressivo no Brasil (novos programas no rádio, novas lojas, reedições 
de discos dos anos 70, etc.), Malária remonta o conjunto com uma nova 
proposta musical e lança um dos primeiros LPs de rock progressivo da 
“segunda geração” brasileira, “(Em Caso de Acidente) Quebre Este Disco”,
 ainda trilhando o caminho independente. Assim ele segue durante toda a 
década de 90, para afinal estrear o novo século gravando para o selo 
especializado niteroiense Rock Symphony o CD “Technolorgy”, considerado 
pelos fãs como o trabalho mais "progressivo" da banda, ao lado do disco 
anterior, “Farawayers”.
Paralelamente, Malária vem desenvolvendo 
outra faceta do conjunto, presente nos CDs “Pega Varetas” (este não traz
 nem mesmo o nome Acidente na capa, apenas o sugestivo subtítulo “Mêu 
Páu de Sêbo”) e “Não Pode Ser Vendido Separadamente”, com um rock 
descompromissado, estruturalmente mais simples e direto, com letras 
mordazes e um humor bastante ácido. A idéia é resgatar antigas 
composições que ficaram perdidas, com participação de antigos membros, e
 mesclar com músicas novas, nos estilos mais ecléticos possíveis (raps, 
marchinhas, baladas, indo desde o puro pastiche até mesmo ao fino 
instrumental progressivo). Isso certamente pode causar alguma confusão, 
apesar de os CDs trazerem avisos diversos do tipo “cuidado – não é rock 
progressivo”, mas a motivação real desses lançamentos é a de manter o 
nome Acidente vivo e em atividade, para a marca legal não caducar. Ao 
menos essa é a desculpa que eu sempre ouço!
Passo a palavra então 
ao mestre Malária em pessoa, para que ele conte um pouco de sua visão 
dessa história toda, sem cortes, sem censura e com muita verve.
Quem vos escreve é Paulo Malária, tecladista e 
produtor do Acidente, "aquela banda que ninguém conhece mas todo mundo 
já ouviu falar", 30 anos de estrada, 10 discos e nenhum sucesso.
 
É impossível contar a história do 
Acidente sem mencionar os nomes de Helio 'Scubi' Jenné (que fundou 
comigo a banda em 1978 e reaparece no álbum mais recente), Guto Rolim, 
Zeca Pereira (membros da anterior Banda Só Por Uma Noite, que vieram 
para o Aça em 1981 gravar o 1º disco e os 2 seguintes), Raul Branco, 
Fernando Sá (God rest his soul), Fernando Carvalho (Grhs as well), 
Helinho, Baster Barros, Paulo Lucic, Ricardo Moreno (dentre os muitos 
que cerraram fileiras no 1º Acidente, o do rock básico & blues), 
Zunga Ezzaet, Jarbas Loop, Bruno Mega (que juntaram forças para 
organizar o 2º Acidente, o progressivo, no ano mágico de 1989), Ary 
Menezes, Mario Costa, Renato Borges (membros atuais da banda, se é que 
se pode usar o termo "atual" para um grupo que não se reúne há anos).
Mas
 aqui não pretendo contar história alguma: ela já está debulhada no bem 
transado site www.acidente.ac, é só acessar, se inteirar de tudo e 
aproveitar para baixar a obra integral do novo e velho Aça. Quero 
aproveitar o espaço é para desabafar e tentar explicar o que se passa na
 cabeça de um idiota (strictu sensu: indivíduo com idéias próprias) que 
se empenha durante 3 décadas em manter vivo um ideal que já nasceu 
morto, produzindo para isso 10 discos independentes, mesmo após 
perceber, e para isso bastava 1, que nunca teria divulgação: em tempos 
de fartura (antes) ou crise (agora), o trinômio gravadoras + empresários
 + editoras domina a mídia com mão de ferro, subornando quem se sujeita 
(o famigerado jabá) e jogando na vala do desemprego os profissionais que
 insistem em se manter íntegros, sendo o objetivo final ocupar 100% do 
espaço disponível com seus produtos/contratados/editados. Furar este 
bloqueio por uma questão de gosto pessoal é atitude tão reprovável, 
entre eles do mercado, quanto publicar um anúncio num caderno de 
classificados porque gostou do visual. O pecado capital é o mesmo: a 
empresa deixou de faturar.
Vamos então à reminiscência infantil 
imbecil que sempre se impõe num tal momento do texto. Lá pelos idos de 
XX64 (mutei alguns dígitos para evitar especulações sobre minha 
senectude), eu era um emérito colecionador de figurinhas (e qualquer 
outra coisa inútil também). Alguns álbuns eram artísticos, outros eram 
umas porcarias mal impressas com times de futebol que atraíam a molecada
 oferecendo prêmios. Tinham nomes tipo Equipe, Olé, Craques da Pelota 
etc. Para ganhar o prêmio era preciso preencher uma página. Em geral, 
cada página tinha 3 níveis de figurinhas premiadas: a carimbada (também 
chamada difícil), a carimbada em relevo (muito difícil) e a assinada 
(que não saía nunca, se é que era impressa). Ninguém conseguia ganhar 
prêmio algum. Ora, eis que um dia, logo no começo de um desses álbuns, 
sai no meu envelope uma figurinha assinada!
 
Antegozando o prazer do primeiro e único
 prêmio num desses álbuns, comecei a mostrar o troféu para a turminha. 
As reações me ensinaram muito sobre a natureza humana enquanto criança: 
"pô, me dá essa aí, troco por outra melhor"; "troco por duas"; "se tu 
não trocar essa figurinha comigo, nunca mais sou teu amigo". E de fato 
perdi algumas amizades por toda uma vida, no que devo ter feito 
excelente negócio, mas mantive a figurinha raríssima colada na página 
com a firme obsessão de completar aquele time (vai lembrar qual era! 
qualquer coisa tipo XV de Piracicaba, Prudentina ou Comercial de 
Ribeirão Preto, o Rio naquela época já era um vazadouro de lixo 
editorial paulista), gastando a mesada com envelopes até que acabaram 
saindo na minha mão a difícil... e a mais difícil... e pronto: ganhei 
uma bola de futebol! Lembro-me do prazer inaudito com que fui no carro 
de meu pai até algum lugar do Rocha ou arredores para tomar posse de um 
courinho Drible (ou seria Elite) nº 4. O cara arrancou as 3 figurinhas 
carimbadas e disse: "se você completar de novo, pode passar aqui e pegar
 outra bola". É claro que isso nunca aconteceu, nem comigo, nem com 
ninguém que eu saiba! A bola foi entregue vazia e, ao contrário da 
figurinha assinada, não resistiu à vontade de meus simpáticos amiguinhos
 de estragar o prêmio do quatro-olho no próprio dia, jogando uma pelada 
sem enchê-la. Mas mesmo toda lanhada foi para a estante onde durante um 
bom tempo eu a contemplava e pensava: GANHEI COM ESFORÇO E SORTE, ME DEI
 BEM.
E o que é que isso tem a ver com o Acidente? (Melhor 
arranjar u'a boa resposta ou vou ter de parar por aqui).
Tem a ver
 que, ao longo das muitas décadas que se seguiram, obtive algumas 
realizações pessoais remarcáveis (ninguém é incompetente de todo): se 
formei numas faculdades aí, passei nuns concursos, tive uns textos 
publicados, inclusive este que você está perdendo tempo a ler. Mas a 
bola do Acidente, essa não rolou. A figurinha mais difícil nunca saiu.
Comecei
 a tocar em banda em 1973 e durante alguns anos a Banda Só Por Uma Noite
 foi a coisa importante em minha vida. Com a BSN íamos a festivais, 
daqueles bem fuleiros em clubes e colégios, onde cada um tocava uma 
música. Tivemos 15 minutos inesquecíveis: zoamos, nos divertimos, 
acumulamos histórias que renderiam um texto maior do que este. Porém, ou
 a galera não acreditava em viver disso, ou era inibição de dar um passo
 maior, ou então falta de grana mesmo (é - era isso). Ficávamos 
ensaiando interminavelmente na varanda da casa de meus pais na Urca, sem
 partir para o combate aberto. Lá por volta de 1976/1977, poucas bandas 
no Rio teriam repertório ou entrosamento melhor que o nosso, mas já no 
critério aparelhagem estávamos na 8ª divisão. Acabei chutando o balde e 
quis desistir da música, mas não quis muito, porque em 1978 fundei o 
Acidente, e no final de 1980, enfiado no IBGE da Mangueira de 3 da tarde
 à meia-noite, ganhando astronômicos 5 salários mínimos mensais, resolve
 produzir um disco independente! O Rui, irmão do Zeca, tinha produzido 
um para a mulher (Marisa Gata Mansa, God rest her very soul), e me 
ensinou o caminho das pedras. No início de 1981 o Acidente tinha a (para
 mim) melhor formação possível: Zeca, Guto, Scubi e eu, todos ainda 
jovens, na faixa dos 23 aos 25, cheios de vontade e disposição. Na 
última hora juntou-se à tribo o Samuca, emérito solista, que mais tarde 
montaria o Absyntho (ele aprendeu bem a lição que lhe ensinei: "nome de 
banda bom é aquele que fica logo na frente, numa prateleira por ordem 
alfabética").

Ensaiando numa varanda na Urca, Rio de 
Janeiro
 
 
 
 
Assim foi gravado o LP "Guerra Civil", 
que ficou pronto em maio de 1981. Um disco, ça va sans dire, 
precaríssimo em quaisquer aspectos que dependessem da grana, mas 
transbordando de atitude, e afinal, o que não era precário naqueles 
primórdios do BRock?
Nenhuma rádio quis nem saber. Hoje vejo que 
aquela era a hora de parar, emigrar para a Austrália, ir lavar prato em 
Sydney e recomeçar mais tarde num ambiente menos impróprio. Mas 
aconteceram alguns fatores inesperados que confundiram meu juízo.
Até
 dezembro de 1981, apenas uma música do disco ("Eu Ainda Amo Vocês", do 
Guto) tinha obtido um solitário airplay, concessão régia do radialista 
Ibrahim Jr. (onde andará), que tinha um horário na Rádio Imprensa. Isso 
não chegava a caracterizar um evento imponderável. Mas naquele final de 
ano, um programa de larga audiência chamado "Poeira & Country", 
produzido e apresentado por Luiz Augusto (que fim terá levado) na 98 
começou a tocar "O Vaqueiro e a Debutante", minha, do Scubi e do Raul. E
 a música ficava todo dia entre as 3 primeiras!!! Sintomaticamente, 
naquele exato momento em que devíamos ter saído pra luta, o grupo estava
 desfeito devido a desavenças bisonhas (Samuca e Scubi deram um show 
bêbados, Zeca não gostou). E ainda não havia Acidente subível em palco 
quando, em fevereiro de 1982, a Fluminense FM ("A Maldita") entrou no ar
 em fase experimental, eu fui a Niterói levar o "Guerra Civil" e os 
caras imediatamente tocaram "Canto", do Zeca, e passaram a tocar o Aça 
sempre, todo dia, várias vezes por dia, várias músicas do disco.
Aquele
 foi O momento perdido: eu tinha acabado de fazer 26 anos, era jovem, 
esbelto, fofo, sarado, o trem passou e eu não o peguei. De lá pra cá já 
foram outros 26 anos, 9 discos, o Acidente original acabou, montei um 
novo Acidente progressivo com músicos e composições de uma qualidade tal
 que eu me sentia um intruso no meio, mas afinal produzir também tem 
seus méritos, justifica um tecladinho nem tão mal tocado assim... Esse 
2º Acidente obteve uma visibilidade impensada pelo 1º (modéstia à parte:
 com toda a justiça), só que o universo progressivo é pequeno, o muito 
bom é sempre apreciado por poucos. Não há hits prog no hit parade (e se 
os houvesse, não seriam do Acidente, o jabá logo se instalaria). Não dá 
pra deixar de ser um burocrata e viver do prog rock. O certo é que a 
figurinha difícil foi levada pelo vento e hoje eu continuo tentando 
encontrar uma nova mas já não há envelopes, a banca fechou, o álbum hoje
 é digital. Mudou tudo, esse tempo já não é o meu, estou vivendo de 
favor num tempo emprestado. Teria sido bom enquanto tivesse durado.

Acidente 
“atual”: Mario Costa (bateria), Paulo Malária (teclados) e Ary Menezes 
(baixo)
 
 
 
 
Tempo, até teria. O meu rock não é 
movido por urgências hormonais, podem reparar que eu não faço letras de 
amor. Rock, pra mim, é protesto e deboche, indignação e escárnio, prazer
 e emoção. Nunca o vi ou ouvi como um adereço exclusivo da juventude que
 com ela se vai. Sou daqueles que poderiam fazer rock até o fim da vida,
 sem deixar de ser autêntico. E...
E, antes que eu me esqueça, 
aquele slogan da "banda que ninguém conhece mas todo mundo já ouviu 
falar" não faz sentido algum em 2008. Isso valeu durante um breve tempo 
no verão de 1982, quando a Fluminense chegou a dedicar 50% da sua 
programação ao indie rock nativo. Arrebanhou com isso uma audiência 
formadora de opinião, fez a fama e logo depois foi gradualmente 
reduzindo essa participação até chegar a zero, ao mesmo tempo em que as 
gravadoras lançavam seus "produtos" rock e os incluíam na playlist de 
outras rádios. A Maldita ficou menos maldita e as concorrentes puseram 
um pezinho no rock. O grande público, é claro, preferiu o que lhe era 
impingido massivamente, em todas as rádios, na TV, não tinha que ser 
garimpado. O jabá só existe porque 99% das pessoas não apreciam 
realmente música, consomem música como uma atividade social, portanto 
morrem de medo de gostar de alguma coisa offmarket e serem taxados de 
"esquisito", "maluco", é melhor esperar o que vem de cima com o 
"imprimatur" e aderir à manada.

Paulo Malária hoje em dia, em algum lugar do
 planeta
 
 
 
Outro dia eu perguntei à minha mina por
 que é que nada nunca funcionou e vai continuar não funcionando, ainda 
que eu produza mais uma cacetada de discos (e vou! e vou!). Discos que 
pouquíssimos irão ouvir. A Paulinha, que faz parte assumida do público 
consumidor e tem discernimento do que isso significa, sintetizou tudo 
numa frase genial: "JÁ TEM OS CERTOS". Negócio é que o segredo para 
entrar no time dos "certos" se me escapou durante a vida inteira. Essa é
 que foi a merda.
Discografia:
Guerra Civil (1981, LP)
Fim
 Do Mundo (1983, LP)
Piolho (1985, compacto 7”)
Quebre Este Disco 
(1989, LP)
Quebre Este Disco (2000, CD, inclui suplemento “Expo Rock 
2000”)
Gloomland (1994, CD)
Farawayers (1996, CD)
Technolorgy 
(2002, CD)
Pega Varetas (2003, CD)
Não Pode Ser Vendido 
Separadamente (2007, CD)
Website: www.acidente.ac
Fonte:Whiplash