Em quarenta anos de carreira, DAVID BOWIE conquistou mais do que apenas sucesso e prestígio no mundo da música. O cantor, que se tornou uma das maiores referências para a sua geração nos anos setenta, vem influenciando uma série de outros nomes e gêneros dentro do rock n’ roll até hoje. Para revisar a polêmica e controversa história desse ícone, a biografia “Bowie” – escrita pelo jornalista musical norte-americano Marc Spitz – chega agora ao nosso país. Não há nenhum outro relato mais completo sobre o camaleão do rock do que essa obra.
Para escrever o livro, Spitz precisou de três anos para recolher o material necessário sobre a carreira de Bowie e para entrevistar pessoas que se envolveram diretamente com o músico, como a sua ex-mulher Angie Bowie, a escritora Camille Pagila, o astro PETER FRAMPTON e a cantora Siouxsie Sioux. Em mais de quatrocentas páginas, o jornalista – que ganhou notoriedade ao colaborar com a revista Spin e por escrever a ótima biografia do GREEN DAY no passado – relata praticamente toda a vida do “desconhecido” David Jones, desde a sua infância problemática no Reino Unido até os dias de glória em Nova York duas décadas depois. O autor, que é um admirador confesso de DAVID BOWIE, misturou à história do cantor trechos e impressões extremamente pessoais da sua adolescência, além de contextualizar os acontecimentos do mundo da música que acompanharam a carreira do camaleão do rock.
O motivo que impulsionou Marc Spitz a escrever essa biografia é muito curioso. Na reunião em que o seu agente sugeriu o nome de DAVID BOWIE para um próximo livro, o escritor não havia prontamente se interessado pela ideia. No entanto, no caminho para casa, Spitz encontrou acidentalmente Bowie à espera de um táxi nas ruas de Manhattan. O autor entendeu isso como um aviso quase que divino e aceitou o trabalho. Posteriormente, Marc Spitz viajou a Brixton – cidade ao sul de Londres – para conhecer o local onde David nasceu e viveu com os pais, Peggy e John. O compositor, que teve uma infância traumática por ser a criança mais “estranha” da sua turma, era nitidamente fascinado pela fama e pela música. Com quatorze anos, David iniciou os estudos de saxofone, ao mesmo tempo em que passava a conhecer a si próprio. As primeiras experiências bissexuais (que se tornaram polêmicas anos depois) eram consideradas “tranquilas” e ocorreram nessa mesma época.
Na época, o desempenho escolar de David Jones era muito ruim. De certo modo, os heróis norte-americanos James Dean e Little Richard motivaram a suas primeiras investidas no mundo da música. Asdrogas e o R&B contextualizaram as suas primeiras empreitadas, com o KON-RADS, que se apresentava somente em pequenas festas; e com o HOOKER BROTHERS; sua primeira banda de blues. No entanto, os primeiros passos de DAVID BOWIE não foram de sucesso meteórico, como muitos erroneamente podem pensar. O cantor passou por outros quatro grupos sem conquistar nenhum prestígio. O primeiro compacto do KING BEES chamou muito mais a atenção pela aparência do seu cantor do que propriamente pela música.
De certo modo, a leitura de “Bowie” pode ser monótona nos seus primeiros capítulos. Não que a história do cantor soe desinteressante, mas certamente Spitz não precisava detalhar imensamente os passos dados pelo jovem David Jones no início da sua carreira. Por outro lado, a partir do momento em que o músico conhece o empresário Kenneth Pitt e o produtor Tony Visconti é que o livro passa a dimensionar melhor a trajetória do camaleão do rock. Embora continuasse sendo um compositor de expressão zero, sobretudo pelo fracasso do compacto “Can’t Help Thinking About Me” e da sua participação junto ao teatral TURQUOISE, a faixa “Space Oddity” proporcionou o seu primeiro contrato com a gravadora Mercury. Herbie Flowers (baixo), Mick Wayne (guitarra) e o até então desconhecido Rick Wakeman (teclado) acompanharam o cantor na execução ao vivo da música no clássico programa Top of the Pops, em 1969.
Por mais que conseguiu uma ótima exposição ao disco “Space Oddity” (1969), DAVID BOWIE não criou hits de imediato. O sucesso era relativo, até mesmo quando gravou “The Man Who Sold the World”, no ano seguinte. Porém, a morte do seu pai modificou muitas coisas. O músico passou a cuidar da família – a mãe viúva e o irmão com problemas psiquiátricos – enquanto a sua namorada, Mary Angela Barnett, assumia o marketing de Bowie junto à Mercury. Com um novo guitarrista (Mick Ronson) e com Angie cuidando da turnê, DAVID BOWIE levou “Space Oddity” e “The Man Who Sold the World” aos Estados Unidos e obteve um interessante resultado.
Embora parecesse que a carreira de Bowie havia encontrado um rumo, a namorada do músico percebeu o quanto Kenneth Pit – um gay assumido – estava apaixonado por David. A situação nitidamente prejudicava os planos da dupla Angie & David, que assinou com um novo empresário, Tony Defries, em 1970. No entanto Spitz não consegue explicar claramente o sucesso que o disco “Hunky Dory” (1971) proporcionou a DAVID BOWIE. De um lado, o novo contrato de empresariamento levou o músico ao cenário mainstream. De outro, pela primeira vez o repertório continha faixas de verdadeiro impacto, como “Changes”, “Life on Mars?” e “Queen Bitch”.
Nos próximos anos, DAVIE BOWIE viveu o ápice da sua carreira. O contrato com a RCA nos Estados Unidos e o contexto do álbum “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” (1972) são extremamente bem abordados por Marc Spitz. Entretanto, os assuntos mais polêmicos são desviados pelo autor, como a fatídica entrevista concedida à Playboy, em que o músico defendia o regime totalitário de Hitler. Por outro lado, a figura misógina de Bowie assumiu a condição de maior referência para os novos artistas da época. Não só o repertório musical de Ziggy se tornou um sucesso – “Starman” apareceu mais uma vez no Top of the Tops –, mas a maquiagem e o figurino fizeram igualmente história. Depois de três discos de relativo fracasso, DAVID BOWIE se apresentava diante de quatorze mil pessoas (por noite) na sua turnê norte-americana.
Não há nenhuma pretensão por parte de Marc Spitz em apontar o trio DAVID BOWIE, Pete Townshend (THE WHO) e John Lennon (THE BEATLES) como os três maiores astros que surgiram no Reino Unido em todos os tempos. Porém, no auge da sua fama, Bowie colaborou com artistas que enfrentavam sérias dificuldades. A música “All the Young Dudes” foi dada de presente ao MOTT THE HOOPLE, que estava prestes a encerrar as suas atividades. Como pianista, David acompanhou IGGY POP e LOU REED em turnês pela Inglaterra.
De certa forma, Bowie causou polêmica pela sua intimidade às drogas. O músico, que pela primeira vez realizava uma turnê sóbrio após gravar o álbum “Aladdin Sane” (1973), passou a ser reconhecido como um viciado em sexo e como um alcoólatra compulsivo. Os fatos, novamente pouco explorados por Spitz, poderiam render mais curiosidades à biografia. Por outro lado, o fim do casamento com Angie e o namoro com Ava Cherry (apontada uma negra exuberante), são destacadas como vértices de uma vida praticamente distante do autocontrole. O vício pela cocaína, que curiosamente não interferiu no processo durante “Diamond Dogs” (1974), até hoje é um dos mistérios da carreira de DAVID BOWIE. No entanto, o período ganhou fama por outro motivo. O álbum, que iniciava Bowie no mundo da soul music, deixou muitos fãs de cara com a nova proposta do cantor. O dinheiro parecia ser o maior interesse de David, que não realizou nenhuma turnê para promover “Young Americans” no ano seguinte.
As drogas e a paranóia ocasionada pelo consumo excessivo são relatadas por GLENN HUGHES. O cantor inglês se hospedou na casa do então baixista do DEEP PURPLE na época em que filmava “O Homem que Caiu na Terra”, a primeira empreitada cinematográfica de Bowie. Porém, as sonoridades – distintas ao rock – passaram a ser a marca característica da sua carreira nos anos seguintes. O disco “Station to Station” (1976) ganhou um contorno new wave. Os sintetizadores apareceram pela primeira vez em “Low” (1977). Entretanto, o sucesso não diminuiu e o impacto de “Heroes” (1977) proporcionou uma das maiores excursões que o rock n’ roll já viu.
De certo modo, “Heroes” marca o ápice e a queda de DAVID BOWIE. Embora esse assunto possa ser contraditório para muitos fãs, Marc Spitz mostra com números e com uma opinião bem forte como Bowie deixou de mostrar um repertório de impacto a partir de “Let's Dance” (1983). O músico, que passou a dedicar a sua vida ao cinema, passou três anos em reclusão na Suíça, país escolhido como a sua nova casa. Embora tenha gravado uma participação mais do que especial em “Under Pressure” (QUEEN) e ter o seu rosto estampado na capa da conceituada revista Time, Bowie enfrentou anos difíceis na década de oitenta. O seu meio-irmão se suicidou. A sua empreitada com o TIN MACHINE não conquistou o prestígio da crítica. O disco “Black Tie White Noise (1993)” precedeu a morte do guitarrista Mick Ronson. Por fim, Angie Bowie causava estardalhaço ao afirmar no livro “Backstage Passes” que um dia encontrou DAVID BOWIE e MICK JAGGER (THE ROLLING STONES) juntos na cama.
Para muitos (inclusive para Spitz), os anos seguintes são marcados por uma carreira oscilante, que encontrou um pouco de sossego quando o NIRVANA gravou no seu disco acústico para a MTV uma versão para “The Man Who Sold the World”, que reatualizou o catálogo de Bowie para os mais novos. No entanto, Marc Spitz mostra como DAVID BOWIE iniciou um verdadeiro novo movimento nessa mesma época. O músico assinou em 1997 um contrato (até então) inédito que permitia a venda de suas composições em formato digital. A sua página na internet lançou o pioneiro Bowienet – uma espécie de Myspace rústico – que aproximou todos os seus fãs ao redor do mundo. Na música, a recuperação veio com o álbum “Heathen” (2002), infelizmente acompanhado pela morte da mãe de Bowie.
“Bowie” encerra com muitas questões em aberto. O último disco do cantor, intitulado “Reality” (2003), contou com uma extensiva turnê, mas que precisou ser cancelada em certo momento. DAVID BOWIE se queixava de dores nos ombros em junho de 2004, que se tornaram insuportáveis ao ponto do cantor desabar no backsatage de um show na Alemanha. A história, aparentemente mal explicada, meses depois foi trazida à tona: DAVID BOWIE na verdade havia tido um ataque cardíaco. Embora não tenha oficialmente encerrado as suas atividades, é nítido que Bowie vive uma espécie de aposentadoria – ou de uma reclusão forçada – como aponta Spitz. No currículo de novidades recentes há no máximo a participação em um episódio do desenho Bob Esponja (em 2007) e a presença na estreia do filme “Moon” (em 2009), dirigido pelo seu filho Duncan Jones.
Não há dúvidas de que “Bowie” é a melhor biografia dedicada ao camaleão do rock entre todos os outros títulos que existem no mercado. Embora muitos fãs devam sentir falta de uma maior quantidade de histórias de bastidores e dos detalhes que envolvem as polêmicas do músico, as mais de quatrocentas páginas fazem um (ótimo) panorama amplo e contextualizado da carreira de DAVID BOWIE. O trabalho de Marc Spitz é caprichado e complementado por dezesseis páginas de fotos. De certa forma, o passado do cantor é desmembrado com muita qualidade e a incógnita deixada sobre o seu futuro é, acima de tudo, uma página em branco.
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