Duas características chamam a atenção em grande parte da crítica musical brasileira. Enquanto uma parcela cultua o passado e não tem ouvidos para o que está sendo produzido agora, outra escuta apenas o novo e despreza os clássicos. A primeira turma é facilmente encontrada no heavy metal, enquanto a segunda bate ponto no mundinho indie.
"Paice mostra uma feroz sequência de hipnotizantes estrondos tirados de sua Ludwig rústica, mas resistente aos seus golpes certeiros. O baterista trata seus pratos como um escravo fugitivo, enquanto Gillan solta um verdejante grito como um leão em seu mais duradouro período de cio."
"Ronnie James Dio encarou o demônio de frente, galopou no cavalo da morte e dançou na propriedade do sobrenatural. A amarga gota de fel que é nódoa nos corações humanos e o desespero pelo poder da força que arrasta todos às profundezas do inferno foram por ele galhardamente cantadas em um heavy metal que Satanás não ensinaria nas escolas do inferno."
"Joey De Maio lança maldições em cada nota executada, despedaça seu baixo em agonia mutiladora. Ross the Boss arrepia os recônditos mais profanos do corpo. Eric Adams vocifera tão afiado que choca-se em contato com a nossa era. A bateria parece ser tocada pelo próprio Lúcifer em êxtase, Scott Columbus detona a estrutura espaço-tempo com suas porradas sônicas."
Poesia e romantismo puros, certo? Entretanto, esses textos, que soam hilários hoje em dia, eram a principal fonte de informação para toda uma geração de ouvintes. A Rock Brigade era, ao lado da Metal, a única revista especializada em heavy metal no Brasil. E, enquanto a segunda durou poucas edições, continua na ativa até hoje, ainda que de forma cambaleante.
Esses textos, mais tarde, evoluíram para resenhas que, invariavelmente, elogiavam as bandas que executavam o “verdadeiro” metal e malhavam impiedosamente qualquer grupo que ousasse soar diferente. Assim, um álbum do Slayer, do Helloween ou de qualquer outra banda considerada “clássica” era sempre idolatrado, por pior que pudesse ser. O melhor exemplo ocorria com o Iron Maiden, cujas críticas dos álbuns na Rock Brigade invariavelmente começavam com a frase “Em se tratando do Iron Maiden, é impossível ser imparcial” ou algo do gênero. Essa postura levou a revista, por exemplo, a classificar o álbum "Virtual XI", um disco que, com muita boa vontade, podemos considerar apenas ruim, com um trabalho muito bom. Isso sem falar das críticas dos álbuns lançados pela gravadora Rock Brigade Records, todos muito bons e que nunca ganharam uma nota inferior a 7, mas isso é papo para outro dia.
Mais tarde, em uma tentativa de se atualizar com o que estava rolando, a Rock Brigade ampliou a sua linha editorial, abrindo espaço para nomes vindos do grunge e do rock alternativo. Isso, naturalmente, desagradou os leitores, que foram educados pela própria revista, durante vários anos, a acreditar que nada era melhor do que o “verdadeiro” heavy metal. É claro que a abertura demasiada da linha editorial, colocando nas páginas de uma publicação especializada em heavy metal bandas como Red Hot Chili Pepperse Nirvana, foi uma decisão arriscada, e essa postura acabou alcançando o efeito contrário ao que almejava: ao invés de aumentar o número de leitores, a Rock Brigade foi rejeitada pelo seu próprio público e teve a sua reputação e credibilidade arranhadas de forma profunda, em um processo que, somado a outros fatores, arrasta-se até hoje.
No outro extremo havia a Bizz, na minha opinião a melhor revista de música que o Brasil já teve. Fonte de informação do mais alto nível e matérias antológicas em suas mais de 200 edições, em uma época pré-internet a revista assumiu o posto de plataforma de lançamento, apresentando novas bandas e artistas para o público brasileiro. Entretanto, a revista sempre teve um certo preconceito com as bandas clássicas, notadamente em relação ao rock progressivo, visto com uma evidente má vontade.
Isso fica claro ao darmos uma olhada na Discoteca Básica Bizz, sessão que trazia, em cada edição, um texto sobre um álbum considerado clássico. Das 215 edições, apenas cinco foram dedicadas ao prog - King Crimson - "In the Court of the Crimson King" (1969) – edição 6, Pink Floyd – "The Dark Side of the Moon" (1973) – edição 21, Soft Machine – "Third" (1970) – edição 45, Genesis – "The Lamb Lies Down on Broadway" (1974) – edição 67 e Yes – "Fragile" (1971) – edição 128. Desses álbuns, um extrapola totalmente o público prog e é figura certa em qualquer lista de melhores de todos os tempos – "Dark Side of the Moon" – e outro, ainda que alinhado à Canterbury Scene, é muito mais um disco de jazz rock do que um álbum progressivo – "Third". Restam, portanto, 3 discos em um universo de 215 – pouco mais de 1%.
Para você não pensar que eu estou enxergando coisas onde não devo, veja só como começa o texto dedicado a "The Lamb Lies Down on Broadway", do Genesis, publicado em fevereiro de 1991 – ou seja, poucos meses antes do estouro planetário de "Nevermind", que causou uma revolução semelhante à ocorrida quase 15 anos antes, quando o Sex Pistols lançou o seu primeiro disco e varreu os excessos dos grupos prog: “Esta é a terceira vez que um grupo progressivo clássico chega à Discoteca Básica Bizz. Por mais controversa que seja a posição deste movimento dentro da história do rock, ele marcou seus tentos, e esse disco faz parte do escore favorável aos dinossauros”. De cara, a própria revista desconsidera o Soft Machine como uma banda de “progressivo clássico”, alusão feita ao King Crimson e ao Pink Floyd. O uso do termo “dinossauro”, de forma claramente depreciativa, comprova o preconceito, exemplificado em uma passagem do texto sobre o álbum "Fragile", do Yes, publicado em março de 1996: “Se o progressivo tinha algo de bom era a liberdade de ousar misturar qualquer tipo de informação musical”. Detalhe: o autor de ambos os textos era o mesmo, Marcos Smirkoff.
Não reconhecer a importância de um estilo como o rock progressivo é uma estupidez. É claro que, em determinado momento, as bandas do gênero se perderam em excessos desnecessários, mas isso aconteceu com praticamente todos os grupos em todos os estilos musicais – do punk ao heavy metal, do pop ao rap. Mas, antes desse declínio, o prog revelou ao mundo não somente músicos excepcionais, mas também álbuns que fizeram história e que, por uma escolha que parece muito mais focada no gosto pessoal de uma equipe editorial do que qualquer outra coisa, passaram batido pelo “reconhecimento” da Discoteca Básica Bizz. Exemplos não faltam: "Wish You Were Here" do Pink Floyd, "Red" do King Crimson, "Close to the Edge" do Yes, "Selling England by the Pound" do Genesis, "Thick as a Brick" do Jethro Tull, "Pawn Hearts" do Van der Graaf Generator, "Mirage" do Camel, "In the Land of Grey and Pink" do Caravan e diversos outros discos dessas e de outras bandas foram solenemente ignorados, vendendo a ideia de que o rock progressivo era um estilo formado por bandas jurássicas e auto-indulgentes que gravavam álbuns conceituais com canções de 20 minutos – o que não deixa de ser verdade, mas também não significa que essas canções eram ruins, muito pelo contrário. Eu, por exemplo, prefiro mil vezes o Pink Floyd arrogante de "The Wall" do que o Sex Pistols barulhento de "Nevermind the Bollocks", apesar de reconhecer a importância e influência de ambos. Isso fez com que grande parte dos leitores da Bizz acreditasse que não havia nada de bom no prog, e que o que importava era apenas o que vinha da capital musical do momento, fosse ela Manchester ou Seattle.
É possível haver um meio termo entre essas duas visões tão antagônicas? Sim, é possível. Vou contar uma historinha para vocês: no final de 2010 convidei diversos amigos para listarem para a Collector´s Room quais foram os seus discos favoritos lançados naquele ano. Recebi listas maravilhosas e repletas de bons sons, mas uma delas me chamou a atenção. O autor era o brother Bento Araújo, editor da poeira Zine, uma publicação dedicada exclusivamente ao rock dos anos 60 e 70. Porém, ao contrário do que se poderia esperar, a lista do Bento veio repleta de novas bandas e não de trabalhos recentes de ícones do período. Ou seja, um cara que é referência em rock clássico para todo o Brasil, e que todos imaginavam que só ouvia isso, mostrou que se mantém atualizado com o que está acontecendo atualmente na música, atestando a qualidade dos grupos atuais.
É difícil encontrar esse equilíbrio. Para falar a verdade, não consigo enxergar isso em nenhuma publicação brasileira. Independente da linha editorial, todas elas pendem para um desses dois lados. Talvez isso aconteça pelo fato de os públicos serem diferente entre si. O cara que ouve rock clássico e se contenta em escutar sempre os mesmos álbuns do Deep Purple, Black Sabbath e Led Zeppelin está pouco interessado no que o Machine Head está fazendo, enquanto quem ouve Strokes, White Lies e The Vaccines não tem nenhum interesse em Rainbow, Clash e Yes. Entretanto, um lado não vive sem o outro. Enquanto as bandas novas se alimentam das influências do passado, os grupos antigos se reinventam em busca de novos ouvintes, em um círculo infinito onde quem ganha, sempre, é o ouvinte.
Afinal, acima de tudo, parafraseando o crítico e escritor norte-americano Alex Ross, a música é algo que vale a pena amar.
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