8 de abril de 2010

Opinião: "Kurt Cobain: dezesseis anos depois"




Há exatos 16 anos, um estampido abrupto e seco colocava a termo a vida dormente e ébria de Kurt Donald Cobain de modo prematuro, aos 27 anos de idade. Este mesmo ato, além de silenciar uma das mais singulares vozes artísticas de nossa história, asseverou o ponto final de uma das mais salutares e curiosas bandas que passaram pelo mundo.

Com a morte de Cobain, ainda mais pelos fatores e circunstâncias que a ensejaram, diversas manifestações acerca do trabalho musical do “frontman” e compositor central do Nirvana foram reverberadas e associadas a tantas outras já existentes. De fato, além de possuir um número sem par de admiradores, o Nirvana (e Kurt, por consequência) agregou também um grupo de “apedrejadores”, sem nenhum exagero ao termo; isto talvez pela grande incompreensão que a música do Nirvana gerou e, surpreendentemente, ainda gera. Tal situação se torna ainda mais densa pelas mudanças havidas no cenário musical após a rápida passagem do Nirvana por seu caminho; afinal, não há como dizer que o rock foi o mesmo depois de “Nevermind”.

Assim, esta reflexão não se destina apenas a entrever os pilares que sustentaram a construção musical de Kurt e sua importância, mas também observar, ainda que brevemente, qual foi o rumo que o rock n roll, de modo genérico, traçou nestes 16 anos de sua ausência.

Não é simples entender concretamente a mensagem perpetrada pelas letras de Kurt, que chegam ao ouvinte junto com o engatilhar da sonoridade do Nirvana sem, ao menos, contrastar sua forma com a história de vida do autor. Para exemplificar tal dificuldade, imaginemos, pois, a figura de um ouvinte que, mesmo sendo um insofismável apaixonado por música, desconheça outro idioma que não o seu e não se preocupa em analisar a tradução das letras das canções estrangeiras que escuta.

Este ouvinte, ao apertar o “play” em “Nevermind”, “In Útero”, ou ainda, em outras canções apartadas, poderá ser abarcado por uma boa sensação, resultante de estar escutando um som forte, muitas vezes denso e concomitantemente empolgante. Por conseguinte, este mesmo ouvinte, interessado com o som da banda, passa a procurar por apresentações do Nirvana e, desde o primeiro instante, percebe estar diante de um certo encantamento. A postura indiferente e violenta do frontman faz o queixo do ouvinte começar a sentir os efeitos irredutíveis da gravidade, enquanto o baixista e o baterista, cada um ao seu modo, puxam-no ainda mais para baixo. Ao fim do vídeo, o mesmo ouvinte, agora mudo e atônito, apenas consegue conjecturar consigo, de modo silente, a seguinte palavra: “impressionante”.

A partir de então, ele começa a se interessar ainda mais pela banda a ponto de ler algumas entrevistas pretéritas já traduzidas. Neste momento, o mito idealizado pelo ouvinte durante a audição de discos e observação de apresentações, começa a ruir. Ele não entende a postura, o comportamento out stage de seu “ídolo” e simplesmente desiste de tentar conectar as declarações absurdas que leu com aquele verdadeiro líder que ousou espatifar uma bateria com seu próprio corpo. Na rua, no bar, na fila do cinema o ouvinte começa a debater o assunto com as pessoas, e o que escuta por vezes faz ainda mais o mito se esvaecer. A estátua do ídolo, agora, não é mais de pedra ou cimento: é de areia, e com o vento, se desfaz, através da mesma indiferença com a qual foi criada.

Apesar de lúdico e hipotético, este é o quadro pintado por muitos daqueles que vêem no Nirvana e principalmente na figura de Kurt o auge da repulsa e do descaso. Como admirar ou adjetivar de “poético” um punhado de palavras sem sentido? Como descrever como excitante uma sonoridade desprovida de qualidade ou preocupação técnica? Enfim, como dizer que o Nirvana foi uma das maiores bandas da história?

Não há como tentar entender qualquer canção do Nirvana, ou ainda, sua postura, sem vislumbrar a motivação original de Cobain, responsável pela composição de todas as letras e bases das canções. Dotado de uma sensibilidade criativa desde muito cedo, Kurt foi abarcado, ainda na infância, por uma das moléstias responsáveis por desajustar o comportamento de crianças e adolescentes: a tortuosa relação de seus pais que, depois do fim, transformou o cotidiano familiar em um ambiente insuportável. Talvez por isto, Kurt tenha crescido com um estigma de inferioridade e auto desprezo muito forte, que decidiu por acompanhá-lo onde quer que ele fosse, desde o seu parco e tímido relacionamento com as pessoas até o modo de escrever suas canções.

Em seus diários, como forma de canalizar esse desespero, Kurt iniciou um processo sincero e confuso de transformar dor em arte, seja em forma de letras ou em desenhos, ambos capazes de, se observados por um psiquiatra, interná-lo em um hospício. O vício em heroína (forma de combater o interminável mal estomacal que lhe afligia), o turbulento casamento com Courtney Love e o nascimento de sua filha Frances Bean agravaram ainda mais este quadro. A partir destas premissas, ao mesmo ouvinte (antes desatento), as letras de “Breed”, “Aneurysm” e a “ultra pop” “Smells Like Teen Spirit” começam a soar, ainda que de modo velado e tímido, congruentes.

Se por vezes Cobain e o Nirvana (por consequência) transpareciam uma arrogância sem par, este era o modo tortuoso que o próprio Kurt encontrava para afastar os seus demônios. Aliás, este era um dos muitos traços disformes de sua personalidade: por trás das grosserias e absurdos perpetrados nas telas, todos que conviviam cotidianamente com ele afirmam que, apesar de seu temperamento difícil (elevado à décima potência pelo vício), Kurt era excessivamente amável e cordial.

Ao mesmo passo, Kurt sempre afirmava e bradava (sem deixar rubra a face) em entrevistas que pouco se importava com o sucesso da banda, chegando a afirmar que nunca se preocupara com isso, quando, em verdade, atormentava cotidianamente seus empresários para que estes pressionassem a MTV, com a intenção maior de apresentar ainda mais os clipes do Nirvana. Agora, não somente as letras soam sinceras e com sentido, como também a postura do ídolo de areia passa a ser vista como simplesmente humana.

Como se não bastasse estes traços incongruentes que irritavam demasiadamente diversas pessoas, (desde o ouvinte mais humilde, como o acima referido, até Axl Rose e James Hetfield), havia também o enorme sucesso que alavancou o Nirvana e modificou, ainda que de modo silente, o modo de fazer música que até então vigorava. Era como se a fórmula clássica do rock n roll tivesse sido profanada e deturpada: não havia sensatez alguma em uma banda de três simples desajustados ter um álbum em primeiro lugar (álbum este, aliás, que se recusava a abandonar tal posto) enquanto obras essências como o “álbum preto” e o duplo Illusions ficavam para trás. E, de fato, tal perspectiva só “piorou”: diversos outros grupos similares ao Nirvana tomaram de assalto a cena e perpetraram temporariamente a receita difundida por Cobain.

Porém, esquecem-se os mais pessimistas (os mesmos que acusam o Nirvana de ter tornado sáfaro o solo outrora fértil do rock n’ roll) que, assim como na geografia e no curso natural da vida, os elementos “perenes” e anteriormente eternos se alteram, abrindo espaço para novos fatores, novos tópicos. Se com as rochas e os mares foi assim, por certo que na arte o efeito não seria oposto, desde muito tempo tem-se provas disso.

Já na metade dos anos 70, o hard rock inteligente e rebuscado de LED ZEPPELIN e GRAND FUNK, bem como a sonoridade psicodélica e progressiva de FLOYD e E. L & P e o glam rock de T. REX e Kiss pareciam restar condenados por um movimento sujo de três acordes, desprovido de técnica ou de comprometimento. Era o punk que dava os primeiros passos, através dos RAMONES, PISTOLS e tantos outros.

Já na transição entre os anos 70 e 80, a New Wave of British Heavy Metal salvou o hard e propugnou de vez o metal (abrindo, através de bandas como Metallica e SLAYER, a trilha do trash), tal qual o SABBATH havia anunciado há quase 10 anos antes. Pouquíssimo tempo depois, foi a vez do “hair” metal assumir a ponta (isto se não levarmos em conta o número de artistas de outras desinências que dominaram igualmente o cenário nesta época, como MICHAEL JACKSON e BAUHAUS). Logo, a mudança sempre se fez presente, seja na década de 60, 70 ou 80. Nos anos 90, quando o GUNS N’ ROSES parecia ter resgatado a coroa do hard rock deixada pelo AEROSMITH anos atrás, Kurt Cobain pegou um adágio próprio que dizia “punk rock means freedom” (punk rock significa liberdade), dobrou-o, recortou-o e provou que, mesmo sendo grunge (movimento este, aliás, tão maleável como uma pasta de dente), era possível emplacar discos e permanecer na história.

Portanto, se muita coisa mudou depois que o NIRVANA passou, era, primeiro, porque tinha que mudar (isso se adotarmos o critério histórico acima descrito) ou, então, porque a cena musical necessitava. Aliás, o momento musical que culminou com o início dos anos 90 foi, de fato, uma das oportunidades de transição mais vultuosas da história. O Metallica, depois de criar uma nova movimentação com “...And Justice For All”, alçou o pleno sucesso com a combinação de peso e elementos comerciais para gravar o conhecido “Black Album”, e quase ninguém os acusou de heresia, naquele momento, por isso.

O GUNS também apostou em sua crescente megalomania para lançar um álbum duplo de inéditas, marcando o surgimento de uma banda bem mais complexa e rebuscada do que aquela que atacou o mundo com “Apetite For Destruction”. Menos de 4 anos depois, a banda, como todos nós a amávamos, havia sido sepultada. Da mesma forma, o Van Halen, em 1991, trocava a receita de seus trabalhos anteriores e lançava o “For Unlawful Carnal Knowledge” (ou simplesmente F.U.C.K) que, apesar de parcialmente agradável, já demonstrava os sinais de anacronismo de Eddie (causados, vejam só, pelos mesmos vícios de Kurt) e criava espaço para as interessantes estranhezas de “Balance”, de 1995.

Sendo assim, não se pode condenar o Nirvana friamente de ter condenado o rock sem se observar todos estes elementos. Não há como discutir a importância da construção musical (ainda que pouco ligada à técnica ou a preocupação com fãs, etc) deixada pela banda e, principalmente, pela figura de Kurt.

Nestes 16 anos após a sua morte, diversas coisas se sucederam. Novos rótulos desnecessários surgiram, mais ídolos caíram e outros grupos tentaram reconquistar seu espaço, mas não tivemos nenhuma outra banda capaz de, com sinceridade e indiferença, sacudir o palco musical do rock n’ roll, seja criando, mesmo que sem querer, um movimento mal alicerçado, ou apenas incomodando aqueles que, desditosamente, achavam possuir o pergaminho que contém o segredo do sucesso.

Com aquele mesmo estampido abrupto e seco, Kurt não silenciou apenas a sua já debilitada vida. Ele também indicou que, dali em diante, o mundo da música não seria mais o mesmo: era como se fosse necessário que outro Nirvana botasse o palanque abaixo para que pudéssemos ver um pouco mais de originalidade neste estado de "quase-mesmice" que abarcou a música no novo século. E é por isto que ainda esperamos, ainda como esperamos a construção das últimas palavras escritas de Kurt: "Paz, Amor e Empatia". Que estas palavras sejam pura existência para Boddah e para todos nós.

Matéria original: Blog Rock Pensante

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