30 de abril de 2010

On The Road: O velho feiticeiro do piano e o Zappa do Funk




poucas coisas me lembram tanto, quanto deitar entre duas caixas de som, com o travesseiro na posição e colocar o velho tema (na época quase novidade) "Rainy Day... Still Away" de Hendrix e sempre chovia lá fora. Depois de algumas Ostras e de um pouco de muito vinho talvez possa dizer que New Orleans é o umbigo do mundo e chove demais por aqui.

Pois é, depois de longo e tenebroso inverno, estou aqui mandando notícias "On the road" na beira do rio Mississipi onde acontece o NEW ORLEANS HERITAGE JAZZ FESTIVAL. Possivelmente, quase com certeza, este sempre foi meu lugar na Amerika idealizada que todos temos dentro de nós. Berço do Jazz, da comida apimentada, da cultura creole e toda esta arquitetura de um caos que complementa o ventre da besta. New Orleans é o cartesianismo francês no meio da cabeça WASP. Tem Gumbo, Mambo e feitiço pra todo lado.

Na idéia de maluco que amigos propuseram numa tarde já inesquecível: “E se a gente fosse lá?” antes que desse pra pensar, o vamos nessa foi instantâneo e estou aqui. O festival (tradicionalíssimo) fica no hipódromo local e vem meio mundo participar. Velhos hippies (sempre eles), Junkies, Freaks, Senhoras de crochê em punho, apostadores de cavalo, meninos insanos, garotas sem juízo, escoteiros, funky people... O povo vem pra terra do Quarteirão Francês ver as varias possibilidades do vento fazer a curva, e creiam, é aqui que ele faz. Não dá pra descrever o “gumbo mix” que é isso aqui. Dez palcos com atrações ininterruptas, feira de comidas, bebidas, artes, camisetas, jóias e de celebrar o prazer de estar junto e desfrutar o momento. Rola gente de Virginia a Varginha provando que tem mais interesse nisso tudo que pode imaginar nossa filosofia vã. Multidões ululando com coisas complexas.



Hoje foi o primeiro de dez longos dias. Se for listar o que assisti, com atenção devota, aqui temos na ordem: Kipori Woods, Thelonius Monk Institute Jazz Ensemble, Jessé Mc Bride, Kenny Neal, Lê Roy Jones, Dr John, George Clinton & Funkadelic, The Black Crowes, Elvin Bishop e Joe Lovano.

Por um sentido estrito e estreito de comentar o que se conhece melhor vamos aqui ficar em dois episódios, as bandas mais conhecidas que tiveram mais impacto. Quando rumei para o palco onde tocaria meu velho ídolo Dr John chovia uma torrente bíblica, a fúria dos elementos me fazia temer um possível cancelamento. Lama, suor e muita cerveja passava pra lá e pra cá no enorme público. Juntei-me com vários companheiros de infortúnio de todas as partes do mundo e iniciamos uma macumba básica pra ver se dava certo. Cada minuto chovia mais e juntava mais gente. Na montagem do equipamento pude identificar velhos conhecidos na banda do velho feiticeiro. Sob intensa chuvarada adentrou o palco após um belo intróito funky, Dr John, o encosto que insiste em atormentar a alma do grande musico Mac Rebennack, caveiras, patuás e um clima de inferno creole abundavam. Após a chamada e resposta com a horn section finalmente adentra o palco cambaleando o feiticeiro da aldeia e tome polka!

Todo de roxo, chapéu de peninha, bengalinha, o velho mestre detonou sem dó nem piedade todos os velhos hits. Um cidadão ao lado que dizia do Alabama sacou um "Insane!" É isso mesmo, uma insanidade. Uma enorme poça ecoava um Woodstock afetivo e o clima estava semelhante pois todo mundo falava com todo mundo e compartilhava as cervejas disponíveis.



Jogando em casa Dr John fez bonito e um set maravilhoso muito superior à burocracia de quando tocou no Rio de Janeiro. Banda afiada de velhos conhecidos com arranjos precisos para os velhos temas, fez todo mundo cantar junto e relembrar os grandes momentos deste gigante do piano.

Já que estava ótimo, porque não melhorar? Pois essa foi a proposta. Rumei imediatamente para o palco ao lado onde Mr George Clinton e o Funkadelic / Parliament sinalizavam o final dos tempos com seu apocalipse de bolso. Pandemônio foi pouco,com o palco lotado de músicos, travestis, malabaristas, strip dancers, Mr Funkenstein regeu o coro dos infernos com muita propriedade. A coisa é muito performática. Um entra e sai sem fim de temas e atrações. Tudo ao som do tonitruante mantra – We need FUNK!

Peles, plumas, patins e guitarradas hendrixianas com um pulsar de um baixão slap que marcava o tempo todo e dizia quem mandava naquela zorra. George Clinton ficava caminhando pelo palco e estimulando a bizarria do “Mondo trasho”. Algumas performances foram inesquecíveis como a de uma cantora saída de um cabaré da Tolouise Street que berrou a ultima Tina Turner de nossas memórias trazendo delírio geral, outras foram inacreditáveis como a fálica de um dançarino que corcoveava em cima dos amplificadores totalmente pélvico.



Ninguém entendia mais nada... O fim do mundo estava instalado e o mestre sorria no meio da cabeleira rastafari multi colorida... deliciado com a surpresa geral. A massa (neste momento enorme como a chuva) pedia mais como se estivessem em um Coliseu. Uma guitarrista toda em couro negro e salto agulha nem piscava por trás da muralha dos óculos escuros e o saxofonista dava pinta em veludo e pelúcia grená. Meu amigo Ruy Dikram com a sabedoria dos pampas me segredou no ouvido: ”É o Zappa do Funk!”. Nenhuma comparação melhor poderia ter sido feita. Fim dos tempos, fim do set sob temporal intenso lavando as convenções de normalidade e bom gosto, na boca ficou um susto e um travo imaginário do sabor das água do Mississipi na construção do gueto num inferno Kitsch. Rumar pra próxima atração é a missão com a sensação que esse registro desta tarde nunca será suplantado apenas justaposto. Obrigado New Orleans, obrigado Dr John e obrigado Mr Funkestein por nos transformar em vossa criatura para além do bem e do mal. Vida que segue.

Por Cláudio Vigo

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