Cidadania e música. O que uma coisa tem a ver com a outra? É fato que a distinção cultural de um povo está intrinsecamente relacionada aos seus valores artísticos. Entretanto, dispensemos os conceitos filosóficos, pois a proposta da questão não é a de elaborar um enfadonho tratado sociológico sobre o assunto. Ao contrário, visa entender o comportamento demente abusivo de alguns idiotas que se inserem atualmente na sociedade.
Dentre as coisas mais irritantes concebidas no mundo, poucas sobrepujam os jargões. Aquelas frasezinhas feitas, disfarçadas de profunda sabedoria, dogmas incontestáveis funcionando como “música para os ouvidos”, mas que na verdade esconde em seu âmago a notável incapacidade do interlocutor de analisar criticamente qualquer coisa que seja. Encabeça o topo da lista a famosa “Gosto não se discute” e suas variações menos elegantes do tipo “Gosto é igual a c..., cada um tem o seu”. Dessa forma, nada se discute e tudo permanece na mais plena mediocridade.
Fica-se, no entanto, a impressão de que apenas o mau gosto não é passível de discussão, pois quem se baseia em modelos artísticos elevados busca sempre trocar conhecimentos por meio de debates. Todavia, o que força esse assunto à baila é a convicção de que os princípios básicos de convívio social e cidadania dependem diretamente do gosto particular das pessoas.
Falemos especificamente da música, apesar da tese servir também para outras vertentes. É suficientemente ruim viver sob uma ditadura midiática que empurra goela adentro tudo quanto é lixo pseudo-artístico, fabricado por uma nefasta indústria do entretenimento, cujos artifícios para justificar a porcaria jogada ao público são os mais sórdidos possíveis.
Não bastasse a ausência de opção nos ditos veículos “democráticos” de radiodifusão, temos ainda que lidar com os modismos tecnológicos e o absoluto desrespeito dos cidadãos com estomago para digerir a gororoba fonográfica cada vez mais apelativa. Não se encontra mecanismo na Terra para fugir dessa praga infecta que inferniza os quatro cantos e tímpanos do país.
Aonde quer que se vá sempre aparece algum anormal com distúrbio auditivo, portando um crime ecológico sobre rodas, equipadão com caixas acústicas de fazer inveja à Orquestra Sinfônica de Berlim, a fim de ostentar um inacreditável repertório de tortura sonora, o qual insiste chamar de música, contrariando todas as definições para essa palavra.
Tal público, irremediavelmente desprovido de bom senso, crê cegamente realizar favor divino ao compartilhar a predileção pela miserabilidade artística a ele imposta, elevando em insuportáveis decibéis toda a vulgaridade de “funks” carioca (nunca a excelente black music dos anos 70), melacuecas pagodísticos intragáveis (não o samba de raiz e o partido alto de outrora), a cornomania sertanoja (nada a ver com o regional caipira), os forrós “universitários” (tentativa malfadada de sofisticar o baião) e as apelações bundísticas dos axés e rebolations da vida.
Permita abrir parêntese para advogar que cidadãos de gosto refinado e erudito, como os apreciadores de ópera, música clássica, jazz, blues, soul, MPB e rock (tradicionalmente estereotipado como um som para se ouvir em volume alto), entre outros, independentemente de classe social, pois pobreza de espírito não está relacionada a poder aquisitivo, dificilmente expõem suas preferências em ambientes não propícios, reservando-se a degustar suas paixões de forma individual, evitando o incomodo coletivo.
Infelizmente, os que possuem essa consciência ficam reféns da cretinice bovina dos eternos seguidores de modinhas imbecilizantes com a última apologia ao crime e à putaria desenfreada, disparadas pelo estridente MP3 do celular made in China, ignorando automaticamente qualquer aviso de “PROIBIDO APARELHO SONORO” e coisa que o valha, sempre amparados pela égide do sofisma “gosto não se discute”.
É verdade, mau gosto não se discute, se expurga com educação e respeito, mas ainda estamos alguns acordes de poder apreciar esse tipo de partitura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário