Todos sabem que o mago inglês Aleister Crowley (1875-1947) tem influenciado o mundo do rock (e as artes em geral). E todos sabem também que o cantor inglês BRUCE DICKINSON é um cara multitalentoso e uma das personalidades mais inteligentes do heavy metal. Mas é possível que nem todos saibam que BRUCE DICKINSON sempre teve um grande interesse por história da magia, ocultismo e... Aleister Crowley! E ao contrário do que a maioria pensa, Crowley não era satanista, mas sim um filósofo e ocultista praticante assíduo envolvido em diversos ramos da magia (magick) e da filosofia oculta, desde a bruxaria europeia e o paganismo até a cabala, alquimia, magia sexual, hinduísmo, budismo, etc. Contudo, Crowley ficou muito conhecido e mal-afamado devido ao seu comportamento “inadequado” e “chocante” para a época (a Era Vitoriana) e às difamações de fundamentalistas religiosos; nos dias de hoje provavelmente ele não chamaria tanta atenção...
Do álbum solo de BRUCE DICKINSON “Accident of Birth”, a música “Man of Sorrows” fala do próprio Crowley quando menino, profetizando o seu futuro quando iria então estabelecer a vinda de um Novo Mundo, de uma Nova Era. Em “Man of Sorrows”, podemos encontrar também a frase “do what thou wilt”, que significa “faze o que tu queres”, uma referência mais direta e explícita a Crowley e à sua Lei de Thelema. Entretanto, tal lema thelêmico tem uma origem anterior a Crowley, remontando à obra “Gargântua e Pantagruel”, do escritor francês François Rabelais (1494-1553), na qual uma abadia fictícia chamada Abadia de Thelema apresenta esse lema como uma de suas “leis”. Esse famoso lema posteriormente também foi adotado por um dos clubes ingleses pseudo-satanistas do século XVIII chamados de “Hellfire Club” (“Clube do Fogo do Inferno”), no qual se reuniam os aristocratas para praticar orgias, bebedeiras, comilanças, jogatinas e discutir arte e literatura.
Porém, na filosofia de Crowley, e de acordo com a letra de “Man of Sorrows”, “faze o que tu queres” se refere à Vontade do Eu Superior de cada indivíduo e não a meros desejos descontrolados. Esse Eu (ou a Individualidade, o Logos individual, o SAG, o Daimon socrático, etc.), de acordo com a letra da música, supostamente sofre por estar preso em um corpo carnal e por não se fazer conhecido pelo indivíduo que também sofre perdido, desorientado na vida, sem conhecer a Si mesmo e seu verdadeiro destino.
“The Chemical Wedding”, seguinte álbum de BRUCE, é em parte baseado na obra literária e artística do poeta inglês William Blake (1757-1827), que por sua vez também influenciou a filosofia de Crowley a ponto deste acreditar ser uma reencarnação daquele. Contudo, o título do álbum se refere à outra obra, um manifesto rosacruz intitulado “The Chemical Wedding of Christian Rosenkreutz” (“O Casamento Alquímico de Christian Rosenkreutz”) publicado em 1616 e que narra o casamento alquímico de um rei e uma rainha. Esse “casamento” é basicamente uma alegoria para a união sexual do masculino com o feminino (Sol e Lua; Fogo e Água; Espada e Cálice) por meio da magia sexual devidamente ritualizada a fim de expandir a consciência, assim como a união das duas partes da alma (psique) conhecidas na psicologia junguiana como animus (masculino) e anima (feminino); a magia sexual era uma prática central na filosofia thelêmica de Aleister Crowley.
“The Tower”, também do álbum “The Chemical Wedding”, é uma das letras do álbum mais ricas em referências alquímico-sexuais e relativamente crowleyanas. Sendo assim, vamos analisar alguns pontos. A música fala especialmente sobre as imagens alquímicas do tarô e do zodíaco (ambos de suma importância no sistema de Crowley). O próprio título da música se refere a uma das cartas mais “sinistras” do tarô: A Torre, que é referida no Livro da Lei (Liber AL), de Crowley. Na letra da música os versos “There are twelve commandments/ There are twelve divisions” (“Há doze mandamentos/ Há doze divisões”) aludem aos doze signos astrológicos dispostos divididos em casas de 30º no cinturão (imaginário) do zodíaco com seus “mandamentos”. A frase “The pilgrim is searching for blood” (“O peregrino está à procura de sangue”) diz que o alquimista buscador, em sua senda solitária está buscando sua iluminação; o sangue é uma referência à fase “vermelha” da alquimia chamada rubedo. Nessa última fase alquímica a Pedra Filosofal é “encontrada” e o alquimista (ou qualquer iniciado) se torna um sábio “imortal” autoconsciente, realizando sua própria Vontade livre, uma referência direta à Lei de Thelema e que está presente no seguinte verso da letra: “To look for his own free Will” (“Buscar por sua própria Vontade livre”).
Há outras músicas interessantes em “The Chemiical Wedding”, incluindo aquelas inspiradas diretamente por William Blake: “Book of Thel”, “Gates of Urizen” e “Jerusalem”. Do álbum "Tyrannny of Souls”, podemos destacar alguns versos. O título da música “Navigate the Seas of the Sun” significa a libertação de restrições e a expansão da consciência, já que o Sol é um símbolo da cabeça humana, da inteligência e da consciência. Nessa letra, encontramos “Our children will go on and on to navigate the seas of the sun” (“Nossas crianças continuarão a navegar os mares do sol”), que na filosofia thelêmica diz respeito ao arcano d’O Sol no qual duas crianças gêmeas, inocentes e livres “navegam” os raios solares, representando a humanidade em mais uma fase evolutiva, com seus aspectos masculinos e femininos assimilados e harmonizados pelo Eu.
Na música-título “A Tyranny of Souls”, encontramos os versos “Who rips the child out fro om the womb?/ Who raise the dagger, who plays the tune?/At the crack of doom on judgment day” (Quem arranca a criança do útero?/ Quem ergue a adaga, quem toca a música?/ À beira da condenação no dia do julgamento”). É uma descrição do Aeon (Era, Idade, Tempo) de Crowley, retratado no arcano O Aeon (no tarô comum é conhecido como O Julgamento). Esse Aeon é marcado pela a destruição do velho Aeon de Osíris e pelo nascimento do novo Aeon de Hórus. A criança arrancada do úttero, conforme a letra da música, é Hórus, filho de Osíris e Ísis; a adaga erguida significa a morte do Aeon passado, o Aeon de Osíris ou Era de Peixes, considerado tirano, repressor, restritivo e opressor; a música referida nos versos é tocada por meio de uma trombeta tradicionalmente por um ser angélico que anuncia a Nova Era, o Novo Aeon, com o julgamento e condenação do velho. Mas no Novo Aeon, Hórus mantém silência para represntar a "perfeição" do Novo Tempo.
Com relação ao IRON MAIDEN, BRUCE DICKINSON tem colaborado razoavelmente nos processos de composição. Do álbum “Piece of Mind”, a letra de “Revelations” apresenta alguns “mistérios”. O verso “Just a babe in a black abyss” (“Apenas um bebê em um abismo negro”) é um referência ao conceito crowleyano de “bebê do abismo”, um termo para designar aquele que mergulha e atravessa o Vazio. Trata-se de um abismo metafísico e psíquico entre o universo real e o universo ilusório, entre a "insana" dimensão do espírito e a igualmente insana (e aparentemente segura) dimensão da matéria; o magista ou iniciado que fracassa em cruzar o Abismo (e em assimilar o conhecimento nele contido) geralmente enlouquece. O verso "No reason for a place like this" ("Nenhuma razão para um lugar como este") mostra que, uma vez no Abismo, a razão humana como se conhece é completamente abolida.
“Moonchild”, do álbum “Seventh Son of a Seventh Son”, é uma referência direta a uma das obras de Crowley de mesmo nome. A letra da música fala sobre a união de dois magistas (homem e mulher) e o nascimento de um ser supra-humano (entendido também como uma supraconsciência). Na letra, o homem é representado por Lúcifer, o Portador da Luz, o não-nascido, e a mulher é a Prostituta Escarlate, Babalon (nome derivado de Babylon), como aparece nos versos "The fallen angel watching you/ Babylon, the scarlet whore" ("O anjo caído observando você/ Babilônia, a prostituta escarlate").
O álbum “Seventh Son of a Seventh Son” é bastante “profético”, com colaborações de outros membros da banda em torno de temas como magia, alquimia, ocultismo, bem e mal, etc.
Por fim, vamos falar sobre alguns trechos do último álbum do IRON MAIDEN, “The Final Frontier”, que novamente traz alguns temas sobre alquimia, magia crowleyana e expansão da consciência. Na música “Starblind”, podemos ler o verso“Let the elders to their parley meant to satisfy our lust” (“deixar os anciãos às suas barganhas significa satisfazer nosso desejo”). Lust é o título de uma das cartas do tarô de Crowley, que se refere, entre outras coisas, a tudo o que é dos sentidos e que provoca êxtase, pois, nas palavras de Crowley, “não tema que deus algum lhe negue isso.” Os anciãos representam a religião dogmática e repressora do Aeon passado, que oferecem “liberdades de carcereiros” e que “parlamentam” aquilo que lhes traz vantagens ilícitas.
Enquanto eles falam e negociam e ficam no passado, os desejos (lust) do novo Aeon, ou seja, a Vontade livre e o desejo pela vida são satisfeitos naqueles que se libertaram do dogmatismo e que estão sem “o dispositivo cruel da religião”, conforme o verso “Religion's cruel device is gone”. A frase “You are free to choose a life to live” (“Você é livre para escolher uma vida para viver”) é outra referência à Lei de Thelema, ao cumprimento da Vontade.
Ainda do álbum “The Final Frontier”, a letra da música “The Alchemist” pode parecer óbvia, mas ela fala sobre algo mais do que um mero alquimista. O trecho “My dreams of empire from my frozen queen will come to pass” (“Os sonhos de império da minha rainha congelada irão passar”) refere-se à rainha inglesa Elizabeth, que protegia o também multitalentoso, suposto espião e mago John Dee (1527-1608), citado no verso “Know me, the Magus I am Dr. Dee” (“Conheça-me, o Mago Dr. Dee sou eu”). John Dee é conhecido especialmente por seu trabalho sobre magia enochiana e por sua sssociação com o alquimista e clarividente Edward Kelley (1555-1597), com quem "criou" esse poderoso sistema de magia, posteriormente praticado por Crowley (que acreditava ser também a reencarnação de Edward Kelley).
O IRON MAIDEN sempre carregou uma forte aura de intelectualismo, profetismo e mistério, contando muitas vezes com as inteligentes e valiosas contribuições de BRUCE DICKINSON.
Por afinidades intelectuais e de interesses, independentemente do tempo cronológico, Crowley sempre esteve presente, ou apenas “pairando”, no trabalho de BRUCE. E diferentemente do trabalho de OZZY OSBOURNE, cuja letra da música “Mr.Crowley” é um tanto sarcástica e superficial, BRUCE DICKINSON tem se interessado muito mais seriamente pelas questões que envolvem a magia de Aleister Crowley. Ambos, BRUCE e Crowley, sempre buscaram ir mais além, demonstrando que é possível chegar à “última fronteira” entre a consciência e a supraconsciência...
PS: Caro leitor, esta matéria tem unicamente o intuito de algo sobre o trabalho temático da banda/artista, sobre o simbolismo e a mensagem por trás das letras, independentemente das crenças pessoais de quem quer que seja. \\m/
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