A década de 1960 nos Estados Unidos foi marcada por acontecimentos drásticos que teriam grande repercussão no presente e no futuro do país e do mundo. Junto a tais fatos, e de extrema importância para o historiador, também merece destaque a relação de afrontas e respostas estabelecidas entre pensamentos culturais conflitantes. Mais do que um conflito ideológico – característico da Guerra Fria – era o conflito geracional um dos fatores da discórdia interna aos Estados Unidos. Com o advento da Guerra do Vietnã, bem como do movimento pelos direitos civis, do feminismo, do movimento gay entre outros, a juventude evidentemente vivia em um contexto social e político de ampla contestação, para se falar o mínimo.
Com a chegada de Lyndon Johnson à presidência em 1963, o país viu uma intensificação do conflito com o Vietnã. Embora não fosse uma guerra declarada oficialmente, o envio crescente de tropas para o Sudeste Asiático não deixava dúvidas da direção tomada. Nos Estados Unidos, a imagem de uma guerra injustificada e desnecessária tinha suas representações e contestações, fosse nos meios políticos, acadêmicos, midiáticos ou culturais. Pela primeira vez desde a Guerra Civil, o país se encontrava seriamente dividido.
Neste trabalho, vamos nos ater às representações do conflito do Vietnã no meio musical. Para tanto, utilizaremos canções que abordam a questão de maneira plural, e em ocasiões diferentes, como no festival de Woodstock. Como destacou Roberto Muggiati, o recente envolvimento social da música se refletia, mais do que nunca, na ação política, o que de certa forma traçava laços com diferentes movimentos de protesto. Dessa forma, analisar a música de protesto contra a guerra em vigência significa, em uma perspectiva mais ampla, estudar manifestações de cunho político que não raro serviram como o grito de uma geração.
Para tanto, utilizaremos o rock da década de 1960 para traçar as várias facetas da representação do conflito no Vietnã. Os grupos, como ressaltou Paul Friedlander, atravessavam um processo de amadurecimento musical, inovação criativa e aumento do sucesso comercial , o que teria certamente contribuído para que os jovens passassem a dar mais atenção ao gênero, sem que deixassem de ouvir o tão querido folk. Este, no entanto, não será analisado neste trabalho, porém, não se pode minimizar a importância que Bob Dylan e Joan Baez tiveram na politização das letras e poesias.
Com o objetivo de demonstrar a variedade de músicas e de manifestações, utilizaremos aqui os exemplos de John Lennon e seu bed-in realizado em 1969, que resultou na canção "Give Peace a Chance"; a crítica do Creedence Clearwater Revival sobre o recrutamento em "Fortunate Son"; o papel político de Woodstock e as apresentações de Country Joe Mcdonald com "I-Feel-Like-I’m-Fixin-to-Die Rag" e de Jimi Hendrix com "The Star-Spangled Banner" e, em outra ocasião com "Machine Gun".
O bed-in de John Lennon
Em março de 1969, John Lennon e Yoko Ono casaram-se. Sabendo da repercussão que isto geraria na mídia, o casal decidiu fazer dois bed-ins a fim de promover a paz mundial e o fim da guerra. A primeira semana do bed-in teve lugar em Amsterdã, e repórteres do mundo todo poderiam entrar no quarto de hotel onde estavam das 9 da manhã às 9 da noite. Eventos relacionados a este primeiro protesto foram registrados na canção "The Ballad of John and Yoko", gravada pelos Beatles no mesmo ano.
Em maio de 1969, ocorreu o segundo bed-in, em Montreal, no Canadá. John Lennon, cada vez mais politizado, convidou para o quarto personalidades famosas à época, como Timothy Leary, Allen Ginsberg, Tommy Smothers e Dick Gregory para a gravação de uma música. O resultado foi "Give Peace a Chance".
A música possuía uma estrutura rítmica e melódica simples, feita com dois violões acústicos e percussão em portas, janelas e no que mais fizesse som. A letra, relacionada a temas e pessoas que estavam em evidência à época, contava com um refrão que se tornaria o grito dos pacifistas. Contrariamente aos assuntos que as pessoas falavam, tudo o que aqueles desejavam era uma chance à paz.
De acordo com John Lennon, "No fundo do meu coração, eu queria escrever alguma coisa que superasse 'We Shall Overcome'. Eu não sei porque. Aquela que todos cantariam, e eu pensei, ‘Por que ninguém escreve alguma coisa para as pessoas agora? Este é o meu trabalho e o nosso trabalho.’"
John Lennon, como ressaltou Roberto Muggiati, havia rejeitado todas as crenças psicodélicas dos anos anteriores, assumindo uma posição decididamente política. "We Shall Overcome" era a canção tradicional de protesto, popularizada no início do século XX. Lennon buscava um novo hino para demonstrações de protesto, conseguindo o que queria em novembro de 1969. Neste mês, ocorreu o Moratorium to End the War in Vietnam, reunião nacional de mais de 500 mil pessoas em Washington, com a intenção de protestar contra a Guerra. Uma das músicas entoadas era "Give Peace a Chance", cuja mensagem era clara e objetiva, e seu autor uma das personalidades mais queridas pelo movimento pacifista.
A crítica do Creedence Clearwater Revival sobre o recrutamento
Em 1969, o Creedence Clearwater Revival deixou sua marca de protesto. Um mês após Woodstock, a banda lançou "Fortunate Son", uma canção que questionava o porquê de certas pessoas não serem convocadas para a guerra.
John Fogerty e Doug Clifford, vocalista e baterista, respectivamente, haviam servido o Exército de 1966 a 1967. Paralelamente, Fogerty percebeu que algumas pessoas ligadas a poderosos estavam conseguindo escapar do alistamento obrigatório. "Julie Nixon [filha do presidente Nixon] estava saindo com David Eisenhower [neto do ex-presidente Eisenhower], e você tinha a impressão de que nenhuma destas pessoas estariam envolvidas na guerra. Em 1969, a maioria do país acreditava que o moral estava alto entre as tropas, e por volta de 80% deles eram a favor da guerra. Mas para alguns de nós que estávamos observando mais de perto, nós sabíamos que estávamos indo em direção de problemas."
A canção, dessa forma, é cantada do ponto de vista de um soldado que não é o filho de nenhum senador, milionário ou líder militar, ou seja, não é um “filho afortunado”.
Yeh, some folks inherit star spangled eyes,
ooh, they send you down to war, Lord,
And when you ask them, how much should we give,
oh, they only answer, more, more, more, oh,
It ain't me, it ain't me,
I ain't no military son,
It ain't me, it ain't me,
I ain't no fortunate one.
Apesar de ser contrária à guerra, a música punha-se favorável aos soldados que lutavam no Vietnã. Como Fogerty e Clifford, assim como a maioria dos fãs do Creedence Clearwater Revival, muitos dos combatentes vinham da classe trabalhadora e da classe média. Sua presença no conflito se devia, dentre outros motivos, por não possuírem contatos que permitissem que levassem uma vida normal nos Estados Unidos.
O papel político de Woodstock
Não é raro dissociar Woodstock de qualquer atribuição política no cenário dos anos 60. Tal desvinculação pode ser causada por dois erros cumulativos que perpassam décadas no imaginário social. O primeiro equívoco reside na consideração do movimento hippie como desraigado de prerrogativas políticas. Desta forma, este seria visto e lembrado mais pelo drop out do sistema e pela ausência de propostas políticas perante o turbulento contexto dos Estados Unidos. Uma vez traçado este perfil aparente sobre o movimento hippie, caracterizá-lo como o público majoritário de Woodstock nos leva ao segundo equívoco. Embora não haja dados exatos sobre o público naqueles três dias, estima-se que grande parte dos presentes era formada por jovens da classe média – universitários e trabalhadores. Em outras palavras, por mais que se considere o vazio político dos hippies, o público era formado por estudantes e jovens cônscios e críticos das agitações internas e externas ao país. Assim, podemos questionar o “teor apolítico” do festival.
O debate, contudo, permanece até hoje, como é visto nas entrevistas conduzidas por Pete Fornatale com estudiosos do tema. Segundo Bob Santelli, "De modo geral, Woodstock não foi sobre política. Não foi sobre o que estava acontecendo no mundo, as coisas ruins. Foi sobre a criação de um novo mundo, uma nova identidade, uma nova nação, esta Nação Woodstock. Não foi sobre tentar resolver a Guerra do Vietnã ou sobre se manifestar e mandar uma tremenda mensagem ao mundo careta e ao governo americano de que queríamos que a guerra parasse."
Já para Stan Schnier, "(...) Woodstock é sobre a Guerra do Vietnã. Aconteceu numa época em que toda uma geração de jovens estava traumatizada pela guerra. Havia o alistamento obrigatório. (...) A velha geração era a favor dos militares. Mas eu vim de uma cultura onde nossos pais eram da Segunda Guerra Mundial, todos lutaram a boa guerra, uma guerra justificável. A idéia de o país ir à guerra era positiva na mente deles. Os mais velhos não questionavam, só os jovens. (...) Então a música era apenas um reflexo disso. Ela não veio primeiro, foi como um efeito posterior. O que um bando de jovens assustados fazem se vivem num ambiente em que seus pais não os compreendem?"
Pelos relatos, é possível perceber a diferença de visões sobre o conteúdo político de Woodstock. O critério central para a definição gira em torno da Guerra do Vietnã, e enquanto Santelli trata da criação da identidade da “Nação Woodstock” exclusivamente, Schnier trata o festival como fruto da identificação de jovens que se reconheciam pelo trauma da guerra e pelas imposições do sistema, sendo assim, de bases políticas.
Por outro lado, ainda que se defenda o descompromisso político de Woodstock, é evidente que isto não impedia manifestações políticas dos artistas. Desta forma, apresentações como a de Country Joe Mcdonald, do Jefferson Airplane e de Jimi Hendrix, por exemplo, apelavam para a crítica política por meio da música, como será evidenciado a seguir.
A contraposição de valores na música de Country Joe Mcdonald
Joe Mcdonald era um veterano da Guerra do Vietnã que havia tido baixa da Marinha recentemente e se mudara para São Francisco em 1965. O cantor estava escalado para o terceiro dia de Woodstock, junto com sua banda, The Fish, porém, em meio à desorganização do festival, foi convidado a iniciar sua carreira solo sendo o terceiro artista a se apresentar na tarde de sexta-feira. Com cabelos longos e munido de um casaco do Exército, Joe Mcdonald evidenciava sua história por meio da contraposição de valores opostos à sua época.
Ao final de sua apresentação, Country Joe toca sua última música, "I-Feel-Like-I’m-Fixin-to-Die Rag". A maior parte das canções sobre a guerra e o Vietnã era compreensivelmente sombrias e soturnas. Em geral, apresentavam uma repulsa visceral à idéia de um conflito armado, à morte e aos ferimentos de soldados e civis. Por outro lado, a canção de Country Joe é inovadora ao ser carregada de ironia e ter uma levada alegre. Seu divertido refrão logo se espalhou pelos Estados Unidos e virou grito de (anti-) guerra dos jovens.
And it's one, two, three,
What are we fighting for ?
Don't ask me, I don't give a damn,
Next stop is Vietnam;
And it's five, six, seven,
Open up the pearly gates,
Well there ain't no time to wonder why,
Whoopee! we're all gonna die.
Em um ritmo com características folk, "I-Feel-Like-I’m-Fixin-to-Die Rag" punha em questão o porquê da guerra, satirizando as atitudes do governo perante o Vietnã. Contudo, apesar da aparente animação, a ironia torna-se cruel e provocativa na última estrofe da música.
Well, come on mothers throughout the land,
Pack your boys off to Vietnam.
Come on fathers, don't hesitate,
Send 'em off before it's too late.
Be the first one on your block
To have your boy come home in a box.
Os últimos versos adotavam uma postura contrária às canções habituais de protesto, geralmente pautadas na mensagem de “precisamos de paz”. Country Joe, por sua vez, conclama os pais a enviarem os seus filhos para o Vietnã e serem os primeiros do quarteirão a receber o filho de volta num caixão. Com o crescente número de mortos no conflito e com o alistamento militar obrigatório, a guerra estava no seu auge. A música de Country Joe, paralelamente, fazia também uma defesa dos veteranos que haviam servido no conflito, uma vez que certos setores da sociedade americana retaliavam os fracassos. Assim, o músico conseguiu reunir várias emoções sobre a turbulência política e social do período e expressá-las de maneira criativa em uma música que, quando executada em Woodstock, obteve resposta positiva do público e representou um dos momentos políticos do festival.
O hino deturpado de Jimi Hendrix em Woodstock
Embora não estivesse previamente definido, Jimi Hendrix foi escalado para fechar Woodstock, num show que ocorreu na manhã de segunda-feira, quando apenas 10% do público máximo do festival, estima-se, estava presente. Dessa forma, por volta de 40 mil pessoas – número expressivo para os padrões da época – ainda estavam na fazenda de Max Yasgur para assistir o derradeiro show. Ao final da primeira parte da apresentação de Jimi Hendrix, o guitarrista iniciou uma versão de uma música que não fora combinada com o restante da banda, mas que havia sido ensaiada previamente por Hendrix sozinho. A canção era o hino "The Star-Spangled Banner", que recebeu uma releitura perversa aos olhos mais conservadores dos valores norte-americanos.
Sem a letra, Hendrix recria o hino dos Estados Unidos adicionando, com efeitos da guitarra, barulhos de bombas, metralhadores, sirenes, aviões e todo o caos representativo da guerra.
Segundo Ellen Sander, "Senti que o patriotismo estava sendo redefinido. A frase não tinha sido pronunciada ainda, mas a noção de Nação Woodstock já estava presente. Foi um testamento incrível da alma dele, da alma em si e da alma do país."
Para Billy Altman, "O 'Star-spangled banner' encheu o ar. Parecia a Guerra do Vietnã. Soava como um tiroteio, como helicópteros, como metralhadoras. Ele pegou a canção e fez algo que ninguém nunca julgou possível com o hino nacional. Ele o fez soar como tudo que estava acontecendo no nosso país e em volta do mundo no momento."
Seja visto como profano ou profundo, Hendrix acabou por criar um retrato do contexto político do final dos anos 60. O hino começava de forma patrioticamente correta, porém, o meio era permeado pelos citados barulhos e simbolismos, voltando, no fim, à melodia da música. Desta maneira, o guitarrista não só remetia ao Vietnã, mas também à história dos Estados Unidos como um todo, marcada pelas guerras. A performance de Hendrix no último show de Woodstock permanece como uma das maiores lembranças dos três dias do festival: o hino deturpado, como uma de suas manifestações políticas.
Jimi Hedrix retrata a guerra em uma nova faixa
Pouco mais de um mês depois de Woodstock, Jimi Hendrix lançaria uma música que novamente retratava a guerra no instrumental, mas que agora continha uma letra, também sobre o conflito. "Machine Gun" possuía um riff em que o baixo, a bateria e a guitarra atuavam juntos na tentativa de simular o barulho de uma metralhadora disparando. A canção nunca fora gravada em estúdio, e sua letra variava nos shows, apesar de seguir uma linha geral da representação do ponto de vista de um soldado lutando na guerra.
Machine gun, yeah
Tearing my body all apart
Evil man make me kill ya
Evil man make you kill me
Evil man make me kill you
Even though we’re only families apart
A música culpa os “homens malvados” dos governos por forçarem os soldados a terem que matar uns aos outros, ainda que sejam apenas de famílias separadas. A igualdade entre os povos é ressaltada, em detrimento de posicionamentos políticos e ideológicos. Ao final da música, no álbum ao vivo Band of Gypsys, Hendrix reforça sua mensagem
Yeah, that’s what we don’t wanna hear anymore, alright?
(No bullets)
At least here, huh huh
(No guns, no bombs)
Huh huh
(No nothin’, just let’s all live and live)
(You know, instead of killin’)
Apesar do pedido de Hendrix pelo fim das balas, armas e bombas, a Guerra do Vietnã ainda traria milhares de mortes pelos próximos quatro anos.
Conclusão
Pela análise das músicas citadas, por fim, podemos notar a multiplicidade de assuntos que giram em torno do tema principal da Guerra do Vietnã. As canções estudadas, talvez com a exceção de "Give Peace a Chance", fogem da crítica simples na fórmula do “parem a guerra” ou “precisamos de paz”. Pelo contrário: a criatividade das letras, e no caso de Jimi Hendrix, também no instrumental, refletiam pensamentos mais aprofundados sobre o que estava acontecendo.
John Lennon fez sua crítica ao comportamento da sociedade, preocupada com assuntos diversos, mas surda quanto ao pedido por paz. John Fogerty e o Creedence Clearwater Revival atacaram o privilégio de certas pessoas em não serem chamadas para servir no conflito por terem contatos influentes. Country Joe Mcdonald, por sua vez, foi ácido e irônico ao convidar os pais de jovens a enviarem seus filhos para a guerra e serem os primeiros a recebê-los de volta num caixão. Já Jimi Hendrix fez uma apresentação sublime e profana do hino nacional norte-americano confundindo-o com barulhos da guerra, pervertendo um dos símbolos da história dos Estados Unidos. Com "Machine Gun", o guitarrista seria mais direto em sua crítica, colocando a culpa em homens maléficos que provocam a morte entre famílias separadas pela distância.
Dessa forma, é possível perceber como a música, e mais especificamente o rock, contribuíram para a crítica política no contexto dos Estados Unidos nos anos 60. Fosse aproveitando-se da fama para passar uma mensagem, fosse utilizando-se de momentos específicos para realizar uma crítica, os músicos mostravam sua atenção com o que ocorria no mundo, contrariando a imagem de uma juventude desraigada politicamente que se limitava ao estereótipo de sexo, drogas e rock and roll.
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