Durante a última década diversos livros sobre os Beatles foram editados, oferecendo extremos detalhes sobre diversos aspectos da carreira da banda, desde detalhes das atividades musicais antes de formarem os Beatles até detalhes das diversas gravações feitas durante a carreira. Estava eu lendo "Get Back - The Unauthorized Chronicle of The Beatles Let It Be Disaster" de Doug Suply e Ray Schweighardt, um livro muito interessante sobre como foram as gravações do último filme dos Beatles que acabou sendo chamado de “Let it Be”, mas que durante um período foi chamado de “Get Back”. Durante as filmagens, que inicialmente visavam a televisão, não havia ainda um título para o projeto. A canção “Get Back” que todos identificam com o filme ainda não havia sido composta. A história desta composição e sua ligação com eventos políticos ocorridos na Inglaterra na época me fizeram pensar que esta poderia ser uma estória interessante para todos.
Acredito que a maioria lendo isto já tenha visto o filme “Let It Be” ou até ouvido alguns discos piratas cobrindo estas sessões. Neles percebemos que a banda em momentos de descontração tocou canções de outros artistas. Também houve vários improvisos ou "jam sessions", como são chamados no jargão. Improvisos são ótimos exercícios para ajudar qualquer banda a solidificar o seu som, integrando um músico com o outro. Podemos ver em "Let It Be" que o mesmo ocorre com os Beatles.
Após dois anos gravando álbuns em camadas, por etapas, sem necessariamente estarem os quatro músicos tocando ao mesmo tempo, às vezes sequer presentes no estúdio um com o outro, resolveram que seria benéfico para a banda voltar à forma antiga de se gravar. Com este intuito em mente os Beatles acabaram levando todo o mês de janeiro de 1969 para aprenderem a tocar juntos novamente. Muito do material trazido pelos quatro músicos era novo e desconhecido pelos demais, e algumas foram sendo compostas durante as sessões. Este é o caso de "Get Back", e uma das razões que a tornam uma composição tão interessante é que todo o seu momento de inspiração inicial foi acidentalmente capturado em fita e em filme.
Isto mesmo, o tema identificado como "Get Back", seu riff tão instigante, nasceu de um improviso com toda a banda realizado no ensaio do dia 7 de janeiro no Twickenham Studios. O improviso começou com Paul repetindo no baixo parte de uma canção que ele havia tocado alguns dias antes. Tratava-se de um hit daquela semana nas paradas britânicas chamado "I'm A Tiger", de sua amiga, a cantora Lulu. Ele optou então por acelerar o tempo, fazendo o baixo lembrar um cavalo a galope, enquanto George soltava alguns riffs. Paul experimentou cantarolar uma melodia por cima de tudo, completando a formula embrionária. Neste improviso de menos de dois minutos, pode-se identificar claramente o núcleo da canção que seria "Get Back".
Dois dias depois, recomeçando após a parada para o almoço, Paul lidera outro improviso, claramente em torno da melodia e riff que já conhecemos. Paul já grita a frase "Get Back!", embora não haja nenhuma letra no tema, que é ainda um improviso, porém mais direcionado. A frase "Get Back" é reconhecida por George, que comenta ser oriunda da gravação de sua canção "Sour Milk Sea" recém gravada nas sessões de Jackie Lomax. Este artista da Apple teve seu disco produzido por George com participações que incluíram Paul e Ringo em algumas faixas do álbum. No final da canção "Sour Milk Sea", Jackie canta "Get Back, Get Back, Get Back. Why don't you get back now? You don't belong here."
Se Paul de fato pegou emprestada esta frase de "Sour Milk Sea", sua motivação foi a de transformar esta nova composição em uma canção de protesto. Paul levou a banda a tocar a mesma melodia e riff enquanto ele soltava algumas palavras e, em tempo, frases. Lugares como "Arizona" e "California" surgem, como também "Moicano", "Porto-riquenho" e "Paquistanês". Aos poucos "Get Back" passa a se tornar "No Pakistanis". Esta canção que é essencialmente "Get Back" com outra letra, protesta contra o fato de imigrantes Paquistaneses estarem ocupando os empregos do povo inglês. A razão para Paul utilizar este tema estava diretamente ligada a fatos recentes ocorridos na Inglaterra e no mundo.
Em 1968, o governo do Quênia passou a recusar empregos no país para estrangeiros. Isto levou milhares de pessoas nascidas originalmente na Índia e Paquistão, mas que moravam e trabalhavam no Quênia, a deixar o país, muitos optando então por migrar para a Inglaterra. Na Grã-Bretanha, a Casa dos Comuns foi obrigada a criar uma legislação para diminuir o fluxo de imigrantes entrando no país. Contudo, um dos membros do Parlamento, um Sr. Enoch Powell, achou pouco e iniciou uma campanha para repatriar cidadãos provenientes das colônias e ex- colônias. Basicamente seu intuito era expulsar todo este povo da Inglaterra. Em debates políticos com cobertura nacional, Enoch Powell acabou sendo taxado como racista por Edward Heath, líder do Partido Conservador. No entanto, o assunto só iria ser decidido legalmente na reunião com os líderes do Commonwealth. Esta reunião se realizou entre 7 e 15 de janeiro de 1969.
Assim, o assunto estava em todas as manchetes de todos os jornais ingleses e possivelmente na mente de vários de seus cidadãos. Compreende-se então como neste ensaio do dia 9, o assunto vazou para a música dos Beatles com Paul tentando transformar "Get Back" em uma canção de protesto. Em diversos discos piratas, estas versões foram batizadas de "No Pakistanis", uma vez que a frase inicial que Paul cantava falava justamente em "Don't dig no Pakistanis takin' all the peoples jobs. Get Back, Get Back, Get Back to where you once belong." Outros improvisos sobre o mesmo tema seriam gerados nessas sessões e igualmente apareceriam em piratas, tais como "Commonwealth", "Enoch Powell" e "White Power Promenade".
Lembrando que todo este desenvolvimento na letra que originaria "No Pakistanis" estava sendo feito na hora enquanto os Beatles tocavam o mesmo tema básico de Get Back. O ensaio deste dia terminaria com Paul criando dois personagens para a canção, Joe e Theresa. Dentre os próximos ensaios, fica evidente que Paul trabalhara na letra em casa pois "Get Back" saí rapidamente do estágio de um improviso para o de canção séria. Quando Paul puxou o tema novamente em ensaios futuros, percebemos graduais mudanças. Joe já se tornara JoJo; no lugar de Theresa, a heroína ora se chamava Loretta Marsh, ora Loretta Marvin. A canção ainda retinha alguns dos versos políticos iniciais, que seriam praticamente todos abandonados. O refrão “Get Back to where you once belong” seria mantido. A letra, embora periodicamente mudando em detalhes, estava estruturalmente montada, e os Beatles iriam aprender a canção até o dia 14.
Com as sessões passando por uma folga entre os dias 16 e 21 para que a banda, descansasse e esfriasse a cabeça, somente voltariam a trabalhar com ela nos dias 23 e 24 de janeiro. Os Beatles agora haviam deixado o gigantesco Twickenham Studios, trocado pelo menor e mais aconchegante Apple Studio, novo e recém inaugurado, situado no porão do edifício de escritórios da Apple.
Já contando com a preciosa assistência de Billy Preston nos teclados, a banda tirou esses dois dias para estruturar os detalhes da canção. Foi nesta fase que George bolou a entrada com seu riff de guitarra e Billy ganhou seu solo de piano elétrico. A partir do dias 26 começaram a gravar em oito canais pensando já em versões que valessem para o disco. As melhores versões da canção foram dos ensaios do dia 27, donde se extraiu a versão para o compacto. Para o disco, esta versão teve seu inicio e fim editados para incluir falas ditas no telhado.
Esta é basicamente a historia da canção. É interessante perceber como, para um artista, todas as coisas que estão ao seu redor, mesmo as menos significativas, acabam exercendo alguma influência em seu trabalho. No mais, a grande lição desta historia é que se você tem uma banda, procure gravar seus ensaios para estudá-los depois. Não se prenda apenas a tocar suas composições, aprenda também a executar composições alheias, pois você sempre pode aprender um acorde ou frase nova no instrumento. E não esqueça de improvisar com os colegas. Quem sabe você não faz uma composição à Lavoisier, onde o improviso de ontem vira o tema de trabalho de hoje, que se torna o hit carro-chefe de amanhã.
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