Uma pergunta que sempre intrigou os fãs do Queen diz respeito à faixa de abertura de seu álbum mais clássico, “A Night At The Opera”, de 1975: “Death On Two Legs”, uma música bastante agressiva (tanto em sua sonoridade quanto em sua letra) composta por Freddie Mercury trazia o misterioso subtítulo de “dedicated to......” (“dedicada a...”). Acompanhando a letra da canção, que já começa com os singelos versos como “You suck my blood like a leech” (“você suga meu sangue como um sanguessuga”) e “You’ve taken all my money and you want more” (“você tomou todo meu dinheiro e ainda quer mais”), parece óbvio se tratar de alguém que estaria passando a perna na banda. Mas afinal de contas a quem é que o vocalista direcionava tanta raiva?
Alguns fãs debatem na internet sobre o assunto. Entre as páginas, sites, e tópicos em sites de relacionamentos, os nomes que surgem com mais freqüência são os de Norman Sheffield, co-proprietário dos estúdios Trident (com quem o Queen tinha contrato de gravação em seus primeiros discos) e Jack Nelson, manager da banda. No documentário da série “Classic Albums” feito sobre “A Night At The Opera”, Brian May e Roger Taylor chegam a comentar sobre o assunto, mas não chegam a citar nenhum nome. Vamos então recapitular um pouco dessa história.
O início de tudo: o contrato com os estúdios Trident
Em 1972, já com cerca de dois anos de existência, o Queen gozava de boa reputação no circuito roqueiro londrino, mas não conseguia um contrato de gravação, tendo em vista sua sonoridade demasiadamente extravagante para a época, bem como o nome do grupo ser muito afeminado para um grupo de quatro rapazes. Eis que surge uma grande oportunidade: através de alguns contatos por parte da gravadora Mercury, com quem Brian e Roger ainda se viam de certa forma vinculados (por conta de sua extinta banda, o Smile), veio uma proposta para que o Queen servisse de “cobaia” para testar as instalações do recém inaugurado estúdio De Lane Lea, onde acabaram gravando sua primeira fita demo oficial.
Após extensa distribuição do material, os irmãos Norman e Barry
Sheffield, proprietários dos conceituados estúdios Trident em Londres,
interessaram-se pelo promissor quarteto. Financeiramente a proposta até
agradava, já que a banda, sem um tostão no bolso, não precisaria pagar
pelo uso dos estúdios e poderia desfrutar dos melhores produtores e
engenheiros de som da casa. Em contrapartida, só poderiam realizar suas
gravações quando os artistas mais famosos que pagavam pelos serviços do
estúdio terminassem seus trabalhos – o que normalmente compreendia
períodos esdrúxulos e extremamente penosos, entre as 3 da madrugada e 7
horas da manhã...
De qualquer forma, e contando com a camaradagem de alguns artistas como David Bowie e Paul McCartney, que cediam parte de seus horários para que a banda pudesse gravar, conseguem lançar o primeiro álbum, com o mesmo nome da banda, sob o selo próprio dos estúdios Trident. Após certa repercussão (em especial da faixa “Keep Yourself Alive”) e apresentações ao vivo muito comentadas, conseguem então contrato de distribuição com as grandes gravadoras EMI (na Inglaterra e Europa) e Elektra (nos Estados Unidos) e chegam ao segundo álbum, “Queen II”, cujo single “Seven Seas Of Rhye” lhes renderia uma participação no tradicional programa de TV “Top Of The Pops”, da BBC, famoso por apresentar as canções da parada de sucessos. Saem então em uma turnê pela Inglaterra e pelos Estados Unidos, junto ao Mott The Hoople (que fazia muito sucesso na época, graças à canção “All The Young Dudes”, de David Bowie).
Apesar do sucesso crescente, a situação financeira da banda não era das melhores. Freddie Mercury e Roger Taylor eram sócios em uma loja de roupas em Londres, mas tiveram que fechá-la para poderem se dedicar mais à banda. O mesmo havia acontecido com Brian May, que recentemente tivera que abrir mão de um cargo como professor substituto em uma faculdade. E o tal paradoxo de fama e pouco dinheiro só aumentou com o lançamento de “Sheer Heart Attack”: o álbum projetou a banda mundialmente, levando-os a tocar inclusive no Japão, onde tiveram tratamento de verdadeiras lendas do rock, tamanha a histeria dos fãs nipônicos. “Killer Queen”, a faixa de maior sucesso do disco, tocava por todas as rádios, shows eram agendados um após o outro (chegando até a ocorrerem mais de um em um mesmo dia). Mas quanto aos lucros propriamente ditos... Quase nada lhes era repassado. Freddie Mercury já expunha, meio que metaforicamente, um pouco do que sentia em uma das canções daquele álbum...
Flick of the Wrist
Considerada uma espécie de precursora de “Death On Two Legs”, “Flick Of The Wrist” (que refere-se àquele tipo de tapa dado com as costas da mão), parte integrante de “Sheer Heart Attack”, já trazia um Freddie Mercury bastante irritado e incomodado com a situação em que vivia. A letra da música fala justamente sobre abuso e exploração, com trechos como “‘Prostitute yourself’, he says, ‘castrate your human pride’” (“‘prostitua-se’, ele diz, ‘castre seu orgulho humano’”). À época poderia parecer apenas uma canção isolada sobre o tema, mas com o passar do tempo parece claro que Freddie se sentia justamente como uma prostituta explorada por um cafetão, haja vista a excessiva carga de trabalho que lhes era imposta, além de não ver nenhum dinheiro passando por suas mãos, enquanto seus “chefes” andavam pela capital inglesa a bordo de limusines...
Musicalmente falando, “Flick Of The Wrist” pode ser vista também como uma irmã mais velha de “Death On Two Legs”, dada sua levada pesada, seus arranjos intrincados de piano... Um dos grandes destaques fica para a gravação do vocal principal de Freddie, dobrando sua voz em uma oitava mais grave em determinados trechos da letra. E uma curiosidade fica por conta do fato de Brian May só tê-la ouvido pela primeira vez quando foi gravar suas partes de guitarra e vocais, já que no início das gravações do álbum estava se recuperando de uma hepatite.
A morte sobre duas pernas…
Se por um lado a fama do Queen só aumentava, por outro seus membros não podiam desfrutar devidamente de tudo que estavam conquistando: tal papel era exercido por seus empresários. Embora houvessem gravado um concerto no teatro Rainbow lotado, onde a banda aparecia chegando em grande estilo a bordo de uma limusine, a situação verdadeira era bem diferente daquilo. Brian May precisava de um adiantamento para poder comprar um imóvel e deixar morar no apartamento que alugava junto a alguns amigos. Negado. Freddie queria realizar o sonho de ter um piano de cauda. Negado. Mas a gota d’água, que enfureceu a banda de vez, ainda estava por vir: o baixista John Deacon, recém-casado, pediu dinheiro para pagar alguns exames de sua esposa, que se encontrava grávida. Negado também.
Diante de tanta humilhação, os quatro resolvem procurar novos empresários. E para tentar se livrar do contrato leonino que lhes prendia junto aos exploradores irmãos Sheffield e a Jack Nelson, contam com os serviços do advogado Jim Beach, que em seguida também passaria a administrar os interesses da banda, tornando-se empresário e, praticamente, um quinto membro do Queen. Obviamente tiveram que abrir mão de várias coisas, levaram certo prejuízo, mas enfim conseguiram a liberdade. Ao mesmo tempo, precisavam de um empresário de maior renome para representá-los perante as gravadoras, de quem eram contratados diretamente agora. Após uma proposta pífia por parte de Peter Grant (que temia não poder se dedicar em tempo integral mais ao Led Zeppelin, caso fechasse com o Queen), foi escolhido John Reid, que trabalhava para Elton John.
A banda vivia ainda outra situação delicada: após conseguirem um adiantamento da EMI para realizarem as gravações em vários estúdios de primeira linha, e gastarem uma fortuna na produção do álbum, viviam a incerteza de que estaria por acontecer quando lançassem o novo álbum. Era tudo ou nada: o sucesso ou a falência. (felizmente para a banda, “Bohemian Rhapsody” estourou, trazendo o álbum na rasteira e catapultando-os ao estrelato).
Sob a tutela de Roy Thomas Baker, que já havia produzido os três primeiros álbuns da banda, começam as gravações daquela que seria sua obra mais aclamada, “A Night At The Opera”. Enfurecido por todos estes acontecimentos, Freddie Mercury escreve uma peça musical de início caótico, com complicados arpeggios no piano combinando com guitarras e ruídos estridentes: era a introdução de “Death On Two Legs”. Inicialmente o restante da banda havia ficado com um pé atrás, principalmente por conta da sua letra contundente e incisiva, mas por fim decidiram gravá-la. Para se ter uma idéia, certa vez Freddie admitiu em uma entrevista: “a letra era tão vingativa, tão agressiva que Brian se sentia desconfortável em cantá-la. Eu ainda não gosto de falar sobre o que eu estava sentindo quando a escrevi. Era terrível, extremamente terrível”.
Como se não bastasse tanta controvérisa, havia então mais um empecilho: Freddie queria dedicar explicitamente a canção a quem lhe servira de inspiração, e após algumas discussões acaloradas, ficou decidido que o nome do sujeito não apareceria, mas ficaria apenas sugerido no subtítulo “dedicated to....”. Tal decisão se mostrou acertada: Norman Sheffield, quando ficou sabendo do lançamento da canção e do álbum, chegou a acionar a banda judicialmente por difamação, mas como não havia nada que o citasse abertamente nem na música nem no resto do disco, o processo foi arquivado. Talvez com base nisso a imensa maioria dos fãs do Queen acredite realmente que a canção tenha ele como tema.
Acalorando a outra vertente, que defende que a canção versa sobre Jack Nelson, encontra-se a biografia “Freddie Mercury”, recentemente lançada pelo escritor francês Salim Rauer. No livro, ao narrar sobre os acontecimentos da época, o autor coloca o nome de Nelson como sendo a “fonte de inspiração” de toda a raiva e animosidade do vocalista.
Ouvindo a gravação, é impossível não notar o tom agressivo da voz de Freddie durante a canção: ele parece cuspir as palavras enquanto canta, deixando clara toda sua revolta. Em um fórum na internet, corre a história de que ele estava tão raivoso que chegou até a sangrar pelos ouvidos... Uma outra curiosidade é que, assim como seria feito com “Bohemian Rhapsody”, o piano de Freddie servira de guia para mostrar a Brian May como deveriam soar seus riffs, gerando um efeito interessante na edição final.
Versões ao vivo
“Death On Two Legs” passou a ser presença constante nos shows do Queen, mas oficialmente só pode ser encontrada no duplo ao vivo “Live Killers”, de 1979. Nesta gravação, Freddie chega a anunciar que a música era sobre alguém, até que três “bipes” sonoros encobrem sua “dedicatória”, complementada com: “We call him ‘Death On Two Legs’” (algo como “nós o chamamos de ‘a morte sobre duas pernas’”). Tal fato só fez aumentarem as especulações entre os fãs. Embora ele possa realmente ter dito o nome do “cidadão”, corria a informação (e esta é a versão predominante até hoje) de que Freddie, na verdade, soltou alguns palavrões, o que levou à opção da gravadora por censurá-lo, evitando assim problemas com o lançamento do álbum – segundo alguns relatos, ele costumava introduzi-la nos shows dizendo “this is about a real motherfucker of a gentleman” (“ela é sobre um cavalheiro filho da puta de verdade”) ou “this is about a motherfucker I used to know” (“ela é sobre um filho da puta que eu conheci”).
A canção acabou apenas sendo deixada de lado em 1980, a partir da excursão do álbum “The Game”, estrondoso sucesso comercial que obrigou a banda a abrir mão de alguns clássicos para a inclusão dos então novos sucessos.
A letra e a tradução
Por fim, eis a letra e a tradução da controversa canção:
Death on Two Legs (Dedicated to...)
You suck my blood like a leech
You break the law and you preach
Screw my brain till it hurts
You’ve taken all my money
And you want more
Misguided old mule
with your pig headed rules
With your narrow minded cronies
Who are fools of the first division
Death on two legs
You’re tearing me apart
Death on two legs
You’ve never had a heart of your own
Kill joy, bad guy
Big talking, small fry
You’re just an old barrow boy
Have you found a new toy
to replace me?
Can you face me?
But now you can kiss
my ass goodbye
Feel good, are you satisfied?
Do you feel like suicide?
(I think you should)
Is your conscience all right?
Does it plague you at night?
Do you feel good?
Feel good?
You talk like a big business tycoon
You’re just a hot air balloon
So no one gives you a damn
You’re just an overgrown schoolboy
Let me tan your hide
A dog with disease
You’re the king of the ’sleaze’
Put your money where your mouth is
Mister know-all
Was the fin on your back
Part of the deal? (Shark!)
Death on two legs
You’re tearing me apart
Death on two legs
You’ve never had a heart (you never did)
of your own (right from the start)
Insane, you should be put inside
You’re a sewer rat decaying
in a cesspool of pride
Should be made unemployed
Then make yourself null and void
Make me feel good
I feel good…
Morte sobre duas pernas (Dedicada a…)
Você suga meu sangue como uma sanguessuga
Você infringe a lei e reza
Aperta meu cérebro até doer
Você tomou todo o meu dinheiro
E ainda quer mais
Mula velha desorientada
Com suas regras porcas
Com seus amiguinhos imbecis
Que são idiotas da elite
Morte sobre duas pernas
Você está me despedaçando
Morte sobre duas pernas
Você nunca teve um coração próprio
Estraga prazeres, bandido
Falastrão, pessoa insignificante
Você é apenas um velho bebezão
Você já achou um novo brinquedo
para me substituir?
Você pode me encarar?
Mas agora você pode dar um beijo
de despedida no meu rabo
Sente-se bem, está satisfeito?
Você sente vontade de se suicidar?
(Eu acho que deveria)
Sua consciência está bem?
Ela te amaldiçoa à noite?
Você se sente bem?
Sente bem?
Você fala como um grande magnata dos negócios
Você é apenas um balão de ar quente
Com quem ninguém se importa
Você é apenas um moleque crescido
Deixe-me bronzear seu couro
Um cachorro doente
Você é o rei da sujeira
Põe seu dinheiro onde sua fama é de
Senhor sabe tudo
A barbatana na suas costas
Era parte do acordo? (Tubarão!)
Morte sobre duas pernas
Você está me despedaçando
Morte sobre duas pernas
Você nunca teve um coração (nunca teve)
Próprio (desde o início)
Insano, você deveria ser internado
Você é um rato de esgoto decadente
Numa cloaca de orgulho
Deveria ser despedido
E então se tornar nulo e vazio
Faça-me sentir bem
Eu me sinto bem...
Se não pode vencê-los, junte-se a eles
E o Queen não parou por aí. Em seus próximos discos continuaram a abordar algumas variações sobre o tema, conforme pode ser conferido, por exemplo, na faixa “Sleeping On The Sidewalk”, do álbum “News Of The World”, de 1977. Neste blues, composto por Brian May, é narrada a história de um músico que cansa de ser explorado e em certo momento diz a seu empresário onde ele deveria “enfiar sua gravadora chique”. Um ano depois, na época em que começaram as gravações do álbum “Jazz”, a banda decidiu que oficialmente deixaria de ter residência fixa na Inglaterra, pois estavam perdendo muito dinheiro pagando impostos sobre seus lucros. Passaram a declarar residência em países diversos, como a Suíça, país onde administravam os modernos estúdios Mountain, em Montreux, que passaram a usar para suas próprias gravações. Neste álbum, o baixista John Deacon apresenta uma faixa de letra extremamente irônica, “If You Can’t Beat Them” (“Se não pode vencê-los...”), inspirada mais uma vez na perda de dinheiro. A partir deste período, a banda conseguiu firmar um acordo mais favorável sobre a administração de seus direitos autorais, outra fonte de renda que costumava lhes causar muitas dores de cabeça, passando a serem seus próprios patrões.
Regravações
Curiosamente, tanto “Death On Two Legs” quanto “Flick Of The Wrist” foram regravadas recentemente pelo Dream Theater: a primeira foi lançada no álbum “Uncovered 2003-2005”, da série “Original Bootlegs” do selo de Mike Portnoy, e a segunda saiu junto de “Tenement Funster” e “Lily Of The Valley”, no CD de covers da versão estendida de “Black Clouds and Silver Linings”. Estariam Portnoy e cia. passando por problemas parecidos aos do Queen?
Fontes da matéria:
Wikipedia
Queen – site official
“Freddie Mercury”, de Salim Rauer (Ed. Planeta)
DVD “Classic Albums – A Night At The Opera” (ST2 Records – Eagle).
Fonte:
Whiplash